Últimmas Folhas

8 de novembro de 2013

Attili




Attili suspirou com pesar quando colocou o vaso de cerâmica vazio sobre a cabeça e pensou no que ele significava – nada além do que realmente era: um vaso de cerâmica vazio, acompanhado por outros dois vasos, cada qual com seu desenho próprio, mas todos os três igualmente vazios, e igualmente sua responsabilidade. Sobre sua cabeça o vaso negro se equilibrava, e se tornava uma mera afirmação visual da condição de Attili – uma escrava da Casa das Mulheres do Imperador. Na mão esquerda, acolheu o de cor avermelhada, e na direita, o vaso branco. Seu peso ainda era leve – seria apenas na volta de sua viagem que, já cheios d’água, os vasos arriscariam cair e espatifar-se no chão, causando-lhe ainda mais problemas. Em meio a uma guerra às portas de casa, uma cidade deixada às mulheres sempre se tornava um caos, diziam. E as mulheres da cidade de Abermás não eram diferentes: desde que os homens partiram Attili se viu enroscada em mais problemas e críticas do que poderia imaginar. As mulheres do imperador eram insaciáveis, ela sempre soubera, mas nunca precisara trabalhar tão de perto e por tanto tempo com elas. Na paz, ela quase nunca era requisitada.
Enquanto caminhava pelo pátio pouco movimentado, na primeira luz da matina, a escrava considerava profundamente sua atual situação. Sempre conseguia pensar melhor ao ar livre, e com o sol da manhã ainda tímido por trás das colinas de Leste, tudo parecia descortinar-se à sua frente. De repente, todos os seus problemas pareciam simples ante a luz cálida da manhã, refletida nas pedras lisas e claras do pátio interno. A velha árvore no meio já havia há muito perecido, restando apenas seu tronco retorcido e sem vida, mas era uma bela visão mesmo assim: Attili conhecia o ângulo certo para contemplá-la, de forma que visse o tronco fino e seco, e por trás dele a amurada de pedra clara, e ainda depois, o mar azulado da manhã, e ainda depois desse, as colinas de Leste, – até, enfim, chegar ao Sol. Por alguns instantes, Attili acreditava que se simplesmente caminhasse em linha reta, atingiria o Reino do Sol.
Bastava sentar-se na pedra certa, bem ao lado da bica d’água, enquanto esperava os vasos encherem com o filete de água que saía placidamente da boca da bica.

Sobre a Hora Derradeira

OU

Mais Outra História Sobrenatural, Mas, Dessa Vez, Real

 

Cujo Subtítulo É:

As Curiosas Histórias de Morte de Ceres Silva, Deána Deák & Milind Thondup




A MAIORIA DAS PESSOAS NÃO PODE NEM IMAGINAR, mas há algo muito pior do que morrer... E não é ter sua alma roubada numa história sobrenatural. Esses ingê-nuos que escrevem sobre almas roubadas, mortes misteriosas, espíritos desencarnados presos a uma casa, maldições lançadas numa família... São todos um bando de ingênuos principiantes.
Aqueles que sabem o que realmente é uma história sobrenatural podem lhe di-zer. Isto é, se algum dia na sua vida você conhecer alguém que realmente entende des-sas histórias. Não é um tipo fácil de encontrar – eles não estão por aí, espalhados em clubes do livro cult, ou assistindo filmes antigos, ou jogando RPG, ou fazendo rituais misteriosos, ou sequer lendo graphic novels... Não, eles estão bem escondidos de tudo isso, porque sabem o que é uma história verdadeiramente sobrenatural, e sabem que não é nada simpático. E aliás, dá um azar danado procurar por elas – você nunca sabe o que pode te encontrar.
Eles sabem que a verdadeira maldição, a pior coisa que pode realmente acontecer a um ser humano não envolve presas, dilaceração, tripas, mortes súbitas, almas roubadas, esquizofrenia, casas do espelho, cartas de baralho, nem nada disso. Eles sabem que a pior coisa que pode acontecer é simplesmente não morrer.
Exatamente.
Não morrer.
Então é isso. Agora você já sabe a verdade sobre histórias de horror e mistério, histórias que envolvem o sobrenatural, o impensável, aquelas que lhe falam dos piores medos humanos... O que todas elas se esquecem de te contar é que não existe pior coisa no universo do que não morrer. E quando eu me refiro a não morrer, quero dizer não morrer jamais.
O quê? Acaso lhe parece tentadora a ideia de viver para sempre?
E que tal a ideia de não poder morrer para sempre? Soa tão tentadora assim?
Se sua resposta ainda for sim, eu tenho uma boa e uma má notícia. Qual você quer ler primeiro? Como sou eu quem escreve as coisas antes de você lê-las, temo que eu tenha que tomar essa difícil decisão por você... Então vamos começar pela má.
A má notícia é que você está terrivelmente equivocado, assim como está terri-velmente equivocado uma pessoa que nunca cozinhou na vida e não sabe como fermento é importante para a receita do bolo.
A boa notícia é que você vai aprender que está errado.
Não me pergunte dos detalhes, mas você vai aprender. De um jeito ou de outro. Pelo menos essa escolha ainda é sua.

Sonho, 08 de setembro de 2011

Muito assustador.
Era uma cidade. Outra cidade? Pequena cidade?

Um orfanato? Ou uma escola? Toda reformada, bonita, grande, arejada... Mas assustadora. Com uma pintura nova. Mas antiga. Eu continuava vendo outra imagem da casa - com um papel de parede azul floral, meigo, mas desbotado, assustador. Uma diretora horrível, cruel. Crianças apavoradas. Ficavam num "salão" escondido, atrás da parede. Pequenas camas de campanha para todas elas, sem privacidade, dormiam como se fossem em bancos de Igreja.

Aconteceu alguma coisa. Um fogo, uma enchente, alguma coisa. Trancaram as 1500 crianças nesse salão secreto enquanto o fogo se espalhava pelo casarão. Fogo? Não sei...

Ninguém lembrava disso. Ninguém sabia do salão secreto onde eles mantinham as crianças. Havia brinquedos lá dentro, camas reviradas. Eu conseguia ouvir as crianças correndo para a porta secreta e batendo, desesperadas, implorando pra saírem. Muitas morrem no tumulto... Onde está a professora?

Tem uma loja de DVD. Dois seriados atraem minha atenção: um com a capa toda branca, sobre "Vila Primeira" (???), um reino. Um rei. Seus amigos. Capa branca. Talvez um dragão branco. O mistério da história. Outro seriado: capa escura, não lembro. Definitivamente sobre dragões. Talvez fadas também. Era sobre o livro que eu estava lendo. Talvez Guerra dos Tronos, o seriado e o livro. E... Não lembro. Eu assistia uma parte desse seriado, mas nem o livro nem o seriado eram sobre Guerra dos Tronos.

Eu volto para o orfanato/escola... Estou preocupada, apavorada com aquele lugar. Tem uma menina comigo lá. Só nós duas. Discutimos por causa do passado do lugar, ela não acredita, mas eu sim. Vemos coisas, todos veem coisas naquela casa. Tem um menino em particular, com uma mão machucada (queimada?), que nós nunca vemos o rosto dele... Ele está sempre de costas, tentando abrir portas.

No hall de entrada do casarão tem uma parede coberta com umas cortinas/tapeçarias. Bem na entrada mesmo. Nós estávamos discutindo, e de alguma forma arrebentamos a tapeçaria/cortinas... E vemos que há alguma coisa atrás dela. Puxamos, e puxamos. Há um papel de parede amarelo de borboletinhas. Mas ainda há algo embaixo. Puxamos e arrancamos mais, e vemos um papel de parede floral azul - igual ao da casa antigamente. E, embaixo dele, uma pequena porta secreta. O salão/dormitório secreto das crianças estava escondido bem na ENTRADA do casarão!

O Mundo Segundo Rosa Monte [1 de 5]



O Mundo Segundo
Rosa Monte
Noveleta


PRELÚDIO;
PARTE I – Rosa;
PARTE II – Asar;
PARTE III – Valeverde;
PARTE IV – Madras;
PARTE V – Cicatriz
e
EPÍLOGO




PRELÚDIO
Essa é a história de Rosa Monte, não minha, e não me atrevo a me inserir nela, mas é preciso esclarecer certos pontos antes que as minhas transcrições dos relatos dela sejam apresentadas.
Os relatos que se seguem não podem ser confirmados através de fontes oficiais ou por testemunhas oculares, visto que as primeiras não existem, e que quaisquer testemunhas que possam ter existido já devem estar mortas (levadas pela guerra, pelas doenças ou mesmo pelo tempo), mas são relatos verídicos até onde a mente de Rosa Monte pode lembrar-se deles. Não posso dar credibilidade quanto à veracidade de nomes de lugares e pessoas, que podem ou não ser fictícios, apesar de que minha empregadora nunca fez cerimônias quanto a fatos embaraçosos, nem nunca demonstrou nenhuma preocupação quanto à “reputação” de ninguém – nem sequer dela mesma, basta ler seu relato.
Meus serviços foram prestados na melhor forma que pude executá-los, e o pagamento foi efetuado como o combinado. Depois de passar alguns meses elaborando sua história, Rosa Monte partiu sem dizer para onde ia, mas pediu-me para tentar publicar o manuscrito. Concretizo aqui a minha promessa. Sem mais delongas, segue as transcrições da história de Rosa Monte. Que, esteja ela onde estiver, saiba que cumpri minha promessa.
P. R. Vilanova, Verão de 31

7 de novembro de 2013

O Mundo Segundo Rosa Monte [2 de 5]



II – ASAR

Eu poderia começar essa história com Rosa, aos treze anos, saindo de casa nas Montanhas Rossas para procurar pelo pai, mas então, não estaria falando sobre Asar.
Asar das Montanhas só surgiu algum tempo depois, mas como minha noção de tempo é falha, não sei dizer em termos numéricos aonde essa história vai começar. Minha máscara, à qual dei o nome de Asar, não nasceu da noite para o dia. Aos poucos, ela foi-se formando, e na verdade passou por vários nomes (Lodina, Monterrosa) até tornar-se Asar, a garota cega e andarilha.
Talvez não tenha sido tanto tempo assim, mas com certeza alguns anos.
O nome foi o primeiro que veio — era para ser Hasoarr, mas ninguém conseguia pronunciar direito. “Asar” nasceu espontaneamente, como deve ser. Sua cegueira completa foi uma necessidade minha para me salvar algum tipo de trunfo. Sua vulgaridade veio com o tipo de vida que comecei a levar. O medo das máquinas de vapor veio de mim mesma, e a habilidade em lutar também.
Eu brigava muito quando vivia nas Montanhas Rossas, sempre fui boa nisso, e quando comecei a viajar, ainda como Rosa Monte das Montanhas Rossas, aprendi mais. Entretanto, foi Asar quem se aperfeiçoou e encarou a luta como arte. Foi Asar quem conheceu monges lutadores e aprendeu com eles seus truques — e, apesar de não estar muito certa, acho que também foi Asar quem os traiu e fugiu na calada da noite, deixando para trás um templo em chamas.
Asar aprendeu a mentir melhor do que eu, e a detectar mentiras também. Minha visão pode ser péssima, mas meus ouvidos e meu tato não o são. Sinto o tom de voz das pessoas, e se eu puder, toco nelas e fico atenta ao seu coração. É engraçado constatar que ninguém sabe que ao mentir a reação de nosso corpo muda. Eu aprendi isso a duras penas, mas aprendi. Ou melhor, Asar aprendeu. Aprendeu também a jogar e ganhar. Aprendemos juntas que os homens são monstros pervertidos, e que a maioria não se importa.
***

O Livro de Lorena Nero

Prelúdio




“Circunavegando as nuvens do céu”.
Era quase meia-noite, mas isso não parecia fazer a mínima diferença para o homem debruçado sobre a mesa. Ali, no escuro, tendo como única fonte de luz um abajur sem revestimento, ele franzia o cenho enquanto escrevia fervorosamente num papel. A letra saía corrida, determinada e ilegível, mas o autor daquelas palavras parecia conseguir distinguir com perfeição o significado de cada mínima letrinha. Mais outras centenas (se não milhares) de papéis estavam espalhados pela enorme mesa de madeira, agrupados numa ordem discutível, mas clara para quem havia organizado-os. Dentre os incontáveis papéis rabiscados com a mesma letra corrida, havia desenhos a lápis aquarelados, muitos dos quais incompletos, ou tão absolutamente abstratos que era difícil descobrir o que exatamente era.
Às vezes, o homem calvo parava de escrever, bebia numa caneca próxima ao seu cotovelo e consultava dois ou três desenhos. Então, passava a língua pelos lábios e inclinava-se novamente sobre o papel no qual trabalhava. Estava ali desde as seis horas da noite, e parecia que não sairia nem tão cedo. Seu telefone antiquado estava fora do gancho e ao lado dele, os peixes no aquário eram as únicas testemunhas do trabalho fervoroso do velho. 
Peixes, aliás, era um tema freqüente nos desenhos do velho calvo, e só não apareciam com tanta freqüência quanto os ramos sinuosos de trepadeiras e a folhagem misteriosa e sombria de árvores tropicais. Havia, porém, uma vasta coleção: araras, pessoas, barcos, trens, macacos, oceanos, casas em meio a florestas, cadeiras de balanço, crianças. Crianças com peixes. Inúmeras crianças com peixes, como também crianças em cima de árvores, dormindo, lendo, caminhando - correndo por planícies vazias. Mas também havia misteriosas florestas, apenas um emaranhado de formas silvestres, que nem um observador atento conseguiria distinguir todas elas.

A Porta


Relato de um momento na juventude do Senhor José Benário dos Anjos, sucedido, então, de seu momento derradeiro


Ele sempre imaginou histórias fantasiosas para todas as pequenas coisas que o cercavam. Uma panela que caía, uma lagartixa que via no quintal, uma curiosa mancha na parede. Tudo era motivo para uma história fantástica. Ele tinha o privilégio de morar numa casa velha, numa rua tranqüila, e por isso mesmo vivia cercado de pequenos e misteriosos ruídos. Esses ruídos eram, de fato, fontes da maior inspiração para ele, mais até do que as coisas curiosas que via. Sendo um solteirão convicto e anti-social, evitava trazer visitas à casa, e logo esses ruídos eram muitas vezes sua única companhiaà exceção do rádio, é claro.
Alguns desses barulhos lhe eram extremamente familiareso apitar da chaleira, o ranger do portão da frente, o vento que deixava em alvoroço a mangueira e a acácia no seu quintal. Esses barulhos mais rotineiros faziam parte da mitologia da sua principal história, aquela que ele desenrolava em sua mente dia após dia, acrescentando pequenos detalhes e risos à medida que pensava nela. Era seu pequeno mundo de fantasia, onde ele era o único a ter passe livre e controle total sobre todas as tramas e coisas e pessoas e elementos.
É por isso que ele gostava tanto do mês de agostoventava que era uma delícia! Assim, lhe dava ainda mais sons da casa para ouvir e inventar outras tantas histórias.
No último ano, porém, ele não havia conseguido pensar em nada direito. Nada que valesse a pena mesmo. Estava decepcionado consigo mesmo, e passou todos aqueles longos meses taciturno e quieto, e todos ao seu redor haviam percebido a mudança. Havia sido acometido daquele terrível bloqueio criativo que, uma hora ou outra, pega todo mundo. Mas ele não esperava que durasse tanto tempo assim.
Chorava, às vezes. De angústia. E nessas horas, fumava feito uma chaminé. Mas uma tarde de agosto, depois de quase um ano sem escrever ou pensar em nada, ele ouviu. A porta que batia. A porta do quarto que usava para guardar tralhas.
BAM!
Três dias atrás a tartaruga de areia que segurava a porta havia se rasgado, e desde então que ela rangia em seu eixo. Mas três dias atrás não havia o vento que havia naquele dia de agosto.
BAM!
Um barulho novo.

Projeto Pano Preto

sala branca


Eles a haviam trancado naquela sala branca, que quase a deixou cega no início. Precaução, eles disseram. Apenas precaução. Por quanto tempo, ela havia indagado, escondendo o pânico claustrofóbico que apertava sua garganta. Dois meses. Isso se tudo corresse normalmente.

Dois malditos meses. Sozinha naquela sala branca e sem janelas.

O Livro

Eles a haviam trancado naquela sala branca, que quase a deixou cega no início. Precaução, eles disseram. Apenas precaução. Por quanto tempo, ela havia indagado, escondendo o pânico claustrofóbico que apertava sua garganta. Dois meses. Isso se tudo corresse normalmente. Dois malditos meses. Sozinha naquela sala branca e sem janelas. Havia um painel, 3m por 2m, de uma campina verde florida, um céu muito azul. Depois de três dias, ela não agüentava mais aquela imagem. Queria queimá-la, mas não tinha como.

A princípio, ela tivera esperança de que, além da cama, do abajur e do que se passava por um banheiro, eles deixassem que ela trouxesse para o isolamento livros e cadernos. Afinal, ela precisava de um passatempo - literalmente, um *passa* tempo.

Mas não.

Aliás, eles pareciam querer evitar especialmente folhas em branco e canetas. Deram-lhe baralho, tabuleiros, resta-um, quebra-cabeças de mil peças. E tudo o que ela queria era uma folha em branco e uma caneta. Ou um livro de Sherlock Holmes, para fingir que estava naquela Inglaterra vitoriana e nebulosa, em busca do assassino misterioso, ao invés de trancafiada numa sala branca onde o tempo não passava.

Nada de cadernos para ela, no entanto. Muito menos canetas. A única vez que recebeu esses materiais foi para escrever uma carta, que depois de redigida, seria censurada pelos seus observadores, e então enviada pelo correio. Ela não podia manter o material, no entanto.

Mas esperteza era seu nome do meio. Eles não notaram o refil da caneta que ela roubou. Transformou o verso daquele painel horrendo em caderno.

O Amor do Príncipe



ACONTECE que depois de ouvir uma história tão fantástica quanto aquela, que envolvia uma linda princesa adormecida, num rico castelo, por trás de um muro de espinhos e um profundo fosso, a imaginação do jovem príncipe foi à mil. Que segredos, que belezas, que riquezas se esconderiam ali! Uma bela princesa amaldiçoada, apenas esperando pelo seu beijo! Aquela seria sua história, pela qual ele ficaria conhecido por toda a eternidade... Contrataria trovadores para escrever sua lenda, espalharia seu feito heróico por todas as terras, por todos os povos, por todos os séculos!... O jovem príncipe entraria para os Anais da História como o grande guerreiro que ousou penetrar tal castelo encoberto por espinhos e esquecimento!
As histórias dos velhos moradores daquela vila quase abandonada haviam criado na mente do príncipe um amor glorioso, um feito memorável, a história que ele estava esperando para protagonizar. Nada tiraria isso dele e, enquanto cavalgava, acompanhado por seu escudeiro; um velho local; e seu menestrel, Alaric, o jovem príncipe pensava na bela noiva adormecida que o esperava na mais alta torre do castelo. Ela seria linda, delicada, e o amaria com todo o seu ser. Nesses cem anos que permanecera adormecida, ela devia ter sonhado com seu rosto, ansiado por seu beijo, imaginado o seu toque, que não poderia ser confundido com nenhum outro. Ao longo do caminho, o príncipe quase se convencera de que por toda a sua vida havia sonhado com aquela princesa adormecida, apesar de nunca ter ouvido falar dela antes.
Seu avanço era lento: a estrada para o castelo há muito havia sido encoberta por vegetação selvagem, as raízes e as pedras no caminho faziam o avanço do cavalo lento e sôfrego. O velho reclamava de cansaço: apesar das moedas que o príncipe havia-lhe prometido, era velho e reclamão, e não se satisfaria enquanto não pudesse arrancar mais umas moedinhas do nobre. Seu escudeiro, por sua vez, estava assustado com aquela viagem para encarar um castelo amaldiçoado – tinha pavor de magia e tudo que estivesse relacionado a ela. Alaric, o menestrel, parecia ser o único tão entusiasmado quanto o próprio príncipe, mas isso não limpava o caminho a sua frente nem ajudava no avanço montanha acima.
Ao todo, o grupo levou quatro dias para escalar o caminho encoberto por floresta, e quando finalmente chegaram ao topo da montanha, onde se quedava o castelo adormecido, o Príncipe estava resoluto em sua ideia de amor eterno e riqueza que aquela pobre princesa adormecida lhe prometia. A caminhada de sol a sol, o cansaço e a fome haviam misturado-se no jovem Príncipe, resultando num amor incondicional e inquestionável – ele estava apaixonado pela princesa amaldiçoada, não havia dúvidas quanto a isso. Enquanto eles subiram, por aqueles quatro dias, o Príncipe sentara-se com o menestrel Alaric e relatara-lhe sobre o seu crescente amor.

Os Bruxos de Rosamonte



Todos na região de Rosamonte sabem quem os bruxos são, e como eles agem. Contudo, são incapazes de proteger-se contra os ataques mágicos desses homens e mulheres cruéis. Nenhuma bênção adianta, nenhum alho pendurado na porta, as lanças e facas dos caçadores não os matam... E os bruxos vêm e atacam suas crianças e mulheres.
As crianças são as preferidas, aliás. Eles vêm à noite e as levam. Ou as matam. Ou levam apenas uma perna, ou um braço, ou uma mão, para seus rituais pavorosos e malignos...
As pessoas de Rosamonte sabem quem os bruxos são, e como eles agem... Mas nunca conseguem evitá-los. Desde sempre estão fadados a serem atacados por essa seita macabra, e os avós de seus avós já diziam que quem morava na região do Rosamonte estava preso aos caprichos inescrupulosos e incompreensíveis dos bruxos.
Nunca nenhum bruxo falou. Raramente são vistos, até. Mas todas as aldeias de Rosamonte sabem que nas Montanhas Rossas habitam os bruxos, que voam em seus galhos de árvore sobre as cidades, aterrorizando como corvos os que ousam ficar a céu aberto quando o sol se põe. De dia, dizem, se disfarçam em pele de animal, pois sua pele real não tolera a luz ou o calor do Sagrado Sol. Devem, então, percorrer as aldeias e florestas disfarçados de animais, que são quase indetectáveis. Em cada aldeia há um método diferente de reconhecer um Bruxo em pele de animal: em algumas, dizem que tal animal terá pavor de água e olhos vítreos; em outras, diz-se que basta que tenha a cara toda preta para ser um Bruxo; e nas aldeias mais próximas do cume das Montanhas Rossas, dizem que é apenas matando um animal que se sabe do Bruxo: basta estripá-lo, e a cabeça do bruxo sairá junto com os órgãos internos do bicho, seja ele gato ou mesmo um macaco.
Os habitantes de Rosamonte sabem quem os Bruxos são, e como vivem, e como se disfarçam, mas parecem ser incapazes de capturar um ou mesmo matar um desses amaldiçoados. O que eles não sabem, contudo, é que os bruxos de Rosamonte não são os únicos bruxos do mundo.
Aqueles poucos rosamonteses que deixaram seu lar para percorrer o mundo podem confirmar: além de Rosamonte, pouco se fala sobre bruxos, e poucos até são os que acreditam nas histórias das Montanhas Rossas.

5 de novembro de 2013

A História do Colecionador de Relógios



ANTES DE SE TORNAR UMA HISTÓRIA DE FANTASMA



O Sr. Basílio Romano Pontual Neto era um excêntrico, e ninguém tinha dúvidas disso. Até mesmo ele tinha consciência de sua excentricidade. Sua família só mantinha contato porque ele era o primo rico, mas visitá-lo era como penitência para todos. Quando os filhos de seus primos e irmãos faziam por merecer, eram mandados para passar as férias com o tio louco. Sofriam muito, as pobres crianças – na verdade, o Senhor Pontual parecia mesmo que nem tomava consciência da presença daqueles adolescentes perambulando pela sua casa. Seus sobrinhos também não faziam questão de falar com ele. Ninguém, na verdade, fazia muita questão de falar com ele.
O Sr. Basílio Romano Pontual Neto era um excêntrico. Um excêntrico essencialmente por sua fixação. Ele era um colecionador. Um grande colecionador. De relógios. Tinha todos os tipos de relógios: entalhados, de ferro, ampulhetas, de madeira, pretos, grandes, pequenos, de ouro, de bolso, de parede, de sol, modernistas, medievais, antigos, astecas. Eram, ao todo, quatrocentos e quarenta e seis relógios em sua vasta coleção. E claro que, para abrigar tantos relógios, ele também precisava de um vasto espaço: daí a compra da extravagante Mansão Azul, que na verdade era verde.
Tinha vinte quartos ao todo – sem contar os três salões, sete salas, treze banheiros, uma enorme biblioteca, uma grande cozinha, uma baita de uma despensa e um sótão, além das incontáveis ante-salas. Nesse ambiente megalomaníaco e excêntrico, assim como seu dono, o Senhor Pontual organizou sua coleção de acordo com os tipos de relógios, e subdividiu-os por data de fabricação. Ele dedicava toda a sua vida e fortuna aos relógios: era o ar que ele respirava, sua razão de viver.
Ninguém sabia de onde essa louca paixão havia surgido, mas os irmãos mais velhos contavam que desde muito pequeno o Senhor Pontual demonstrava certa indiferença, um tipo de autismo mesmo, com relação a todas as outras pessoas, e ficava fascinado com o tic-tac do relógio de pêndulo da casa dos avós.
Era uma paixão exacerbada pelos tais relógios, o que deixava os empregados um tanto assustados. 

A Pressa e a Perfeição

- Oi, eu sou a Pressa.

- E eu sou a Perfeição.

- Nós somos inimigas.

- Como você já deve saber.

- E se você não sabia, sabe agora.

- O que você não sabe, e que nós estamos aqui pra contar...

- ...é que, algumas vezes, e apenas ALGUMAS vezes, nós andamos de mãos dadas.

- Como agora, por exemplo.

- É, como agora.

- O problema é que...

- ... você nunca sabe QUANDO é agora!

4 de novembro de 2013

Epifania



De que serve um sentimento se você não pode expressá-lo? De que serve um sentimento se você não pode escrevê-lo?

Inspiração desperdiçada, bom conselho ignorado – sim, eu sei, também desperdicei alguns. Admito. Mas por puro desleixo. Agora não me importo mais. Meia-noite, três horas da manhã, durante o banho, prato de macarrão: escrevo, escrevo, escrevo. Na mão, no caderno, guardanapo, roupa. Sim, roupa. Mas escrevo o que vier. Não sou eu quem cria, são as palavras que me abordam e pedem para serem escritas. Às vezes são ingratas. Às vezes vêm incompletas, e me desafiam: termina-me! E eu termino. Ou as guardo numa gaveta até uma próxima vez.
E eis que a claque aplaude.

Alguém disse algo – e nem percebeu o quão bonito soou. Escrevo. Por e para aquela pessoa, que nem vai saber o quanto lhe sou grata. “O caminho das coisas”, “aquilo que vem do além”, “a presença de ninguém”, ou a ausência da mesma. Há aquelas curiosas, sobre frutas sempre serem arredondadas. Ignoro o resto, às vezes, é verdade, mas é para o bem de minha sanidade. Mal sabem eles o quanto as pessoas podem ser chatas...
E eis que a claque vaia.

Atravessar centenas de milhares de versos sem uma palavra, lágrima ou sorriso. Isso é triste. Mas não é o fim do mundo. Podemos viver com isso. Vivemos com isso, e ninguém parece realmente se importar.
E eis que a claque se cala.

Ninguém acreditou em mim quando eu disse isso, e em silêncio, eles deixaram o auditório.

Quando as luzes se apagaram, ele levantou-se e caminhou para o fundo do palco, equilibrando uma pilha de livros numa mão e um laptop na outra. Ninguém ofereceu ajuda, e ele também não pediu.
Em silêncio, também, deixou o prédio.
Em silêncio, caminhou na penumbra fria até seu carro no estacionamento vazio.
Em silêncio, um homem armado, atrás de uma árvore, esperava por ele.
Em silêncio, ele partiu.
E tudo o que deixou no lugar de sua existência foi silêncio.