Últimmas Folhas

7 de novembro de 2013

O Mundo Segundo Rosa Monte [2 de 5]



II – ASAR

Eu poderia começar essa história com Rosa, aos treze anos, saindo de casa nas Montanhas Rossas para procurar pelo pai, mas então, não estaria falando sobre Asar.
Asar das Montanhas só surgiu algum tempo depois, mas como minha noção de tempo é falha, não sei dizer em termos numéricos aonde essa história vai começar. Minha máscara, à qual dei o nome de Asar, não nasceu da noite para o dia. Aos poucos, ela foi-se formando, e na verdade passou por vários nomes (Lodina, Monterrosa) até tornar-se Asar, a garota cega e andarilha.
Talvez não tenha sido tanto tempo assim, mas com certeza alguns anos.
O nome foi o primeiro que veio — era para ser Hasoarr, mas ninguém conseguia pronunciar direito. “Asar” nasceu espontaneamente, como deve ser. Sua cegueira completa foi uma necessidade minha para me salvar algum tipo de trunfo. Sua vulgaridade veio com o tipo de vida que comecei a levar. O medo das máquinas de vapor veio de mim mesma, e a habilidade em lutar também.
Eu brigava muito quando vivia nas Montanhas Rossas, sempre fui boa nisso, e quando comecei a viajar, ainda como Rosa Monte das Montanhas Rossas, aprendi mais. Entretanto, foi Asar quem se aperfeiçoou e encarou a luta como arte. Foi Asar quem conheceu monges lutadores e aprendeu com eles seus truques — e, apesar de não estar muito certa, acho que também foi Asar quem os traiu e fugiu na calada da noite, deixando para trás um templo em chamas.
Asar aprendeu a mentir melhor do que eu, e a detectar mentiras também. Minha visão pode ser péssima, mas meus ouvidos e meu tato não o são. Sinto o tom de voz das pessoas, e se eu puder, toco nelas e fico atenta ao seu coração. É engraçado constatar que ninguém sabe que ao mentir a reação de nosso corpo muda. Eu aprendi isso a duras penas, mas aprendi. Ou melhor, Asar aprendeu. Aprendeu também a jogar e ganhar. Aprendemos juntas que os homens são monstros pervertidos, e que a maioria não se importa.
***

 
Em minhas viagens, descobri coisas sobre o mundo e as pessoas. Se você viaja muito, sabe o que quero dizer. Enquanto descobrimos sobre as diferenças entre os lugares e hábitos, também descobrimos que no fundo todos são iguais.
A única coisa que não descobri é onde está o Bruxo Rosamonte.
Enquanto Asar luta por mim, eu luto para manter amor, e não ódio, por este homem que nunca conheci. Minha máscara de Asar já o odeia. Odeia-o porquê ele é o motivo por trás do sofrimento, dos problemas, das noites mal dormidas e dos calos nos pés. Odeia-o porque ele é um homem que dizem ser magnífico, poderoso, que protege países e ajuda ministros, mas não protege nem ajuda sua filha. Odeia-o porquê tem que odiá-lo, ou não teria forças para levantar no dia seguinte — ou então, se desvaneceria de mim e me deixaria nua, sem minha máscara e vestimenta de Asar, e eu seria novamente Rosa Monte das Montanhas Rossas, míope e perdida, não cega e andarilha.
E é provavelmente aí, quando Asar já está formada em mim e já começa a pensar em Rosamonte de um jeito diferente, que a história dela começa e vai além da minha.
Rosa Monte torna-se a sombra de Asar, uma identidade turva, cuja existência é desconhecida por todos. Rosa Monte desbota-se em Asar, e às vezes até eu duvido que eu ainda seja Rosa Monte. Talvez quem fale agora não seja mais eu, e sim Asar.
Talvez.
***
Sempre fui uma andarilha solitária. No começo, ainda usando meu nome verdadeiro, cheguei a viajar com ciganos e mascates, mas logo optei pela viagem eremita.
Não é tão fácil assim fingir-se cega, mesmo para uma míope como eu, e nem sempre as pessoas são simpáticas ou temerosas às bruxas, principalmente quando essas bruxas têm treze anos e não parecem ter a habilidade de te transformar em pó. Pessoas são perigosas. Nunca se sabe quando irão te atacar. É mais seguro ter um cão como companhia do que um ser humano.
E foi exatamente o que arranjei, depois de minhas primeiras viagens: um cão. Depois de uma luta injusta contra um homem adulto e bastante burro, consegui uma das grandes maravilhas desse mundo: um cão-onça, uma das maiores raças já vistas. Quando eu o ganhei, suas orelhas estavam quase na altura do meu ombro. É realmente um animal magnífico, até com a minha miopia eu consigo ver isso: seu pêlo dourado flameja com o sol, e seu porte é digno de um imperador. Adulto, é maior que muito lobo selvagem.
A princípio, adquiri o animal por uma questão de segurança. Já havia sido atacada em minhas viagens, mesmo em grupo, e não podia arriscar uma segunda viagem sozinha (a primeira tendo sido apenas para fora da minha pequena vila até uma maior) sem algum tipo de defesa além de meus punhos e minha faca.
Um cavalo estava fora de cogitação: apesar da segurança que oferecia e da facilidade de fuga, eu jamais conseguiria comprar ou sequer roubar um. Um cachorro foi o melhor que consegui pensar, e que estava ao alcance de uma iniciante na vida de andarilha, que só sabia briga de rua e fingir cegueira total.
Nunca fui uma pessoa muito criativa, logo o cão-onça ganhou o nome de Onça.
Mas Onça, ao longo do tempo, demonstrou-se mais do que apenas um artefato de segurança para mim. Mostrou-se um amigo e, acima de tudo, um guia. À medida que o tempo passava, e quanto mais eu ficava com Onça e o ensinava a me obedecer, mais ele se tornava meu guia. Aos poucos, desenvolvemos um sistema de comunicação. Onça, o cão gigante, símbolo de luta e força, era agora muito mais do que isso: ele era meus olhos. E isso eu não trocaria por músculo ou faca alguma.
***
Quando eu me tornei Asar, ainda levaria algum tempo para treinar completamente Onça, mas ele já era um companheiro leal. Não consigo contar nos dedos das duas mãos quantas vezes eu me safei de alguma merda graças ao alerta dele.
Nunca mais precisei viajar acompanhada. Por muito tempo, foi apenas ele e eu; Onça e Asar.
Entre sair de casa e me tornar completamente Asar, não há nada muito interessante para contar além da aquisição de Onça. E depois que eu já era Asar das Montanhas com Onça completamente treinado, minha vida tornou-se "rotineira", na medida em que a vida de um andarilho pode ser.
De cidade em cidade, sempre fazendo as mesmas perguntas. Alguns eventuais problemas, alguns assédios, alguns jogos, algumas brincadeiras nas feiras, algumas bebedeiras. Poucos homens. Muita fome. E acompanhando tudo isso, o eterno desejo de encontrar o Bruxo Rosamonte.

***
Fiquei muito doente uma única vez, e a doença quase me levou à morte. Se não fosse pela caridade de um pastor de cabras e seus pais, eu provavelmente teria morrido. Minha visão, já quase inútil, tornou-se praticamente nula naquela época de enfermidade.
Nunca havia sentido tanto medo antes. Sei que não vejo nada, mas o pouco que vejo, eu prezo. Vejo as cores, e o céu claro em contraste com a terra escura de manhã; vejo o pêlo de Onça reluzindo enquanto ele anda ao meu lado; vejo aqueles que são muito maiores do que eu e um perigo em potencial.
Não vejo tudo, mas quem vê?
Durante a febre, permiti-me chorar. Não de dor, mas de medo. Pavor de ficar assim, na escuridão completa. E quando eu entrava em pânico, durante a febre, sentia a mão do pastor de cabras segurar a minha, dizendo que eu ia melhorar, mas tinha que me acalmar.
Depois que me recuperei da febre, minha parca visão voltou, e pela primeira vez, agradeci a deus e ao homem que cuidou de mim. Seu nome era Nathanael, com o qual acabei dormindo na minha última noite lá, porque ele simplesmente disse que não estava fazendo aquilo para conseguir nada de mim. Eu podia detectar a honestidade naquelas palavras, e também consegui detectar o medo em sua voz quando ele disse que por alguns instantes achara que eu não conseguiria me recuperar. Ele estava apavorado.
Então eu dei pra ele, e foi diferente das outras vezes que aconteceu. Era a primeira vez que eu dava a um homem que não havia me vencido de alguma forma, e por um instante, senti-me traindo meu lado Asar. No final, porém, cheguei a conclusão de que estava apenas pagando-o pela bondade de ter me levado até sua casa quando viu que eu estava doente, e por ter cuidado de mim e feito sua família me acolher.
Era a merda de um pagamento.
Na manhã seguinte, eu e Onça voltamos à estrada.
Nathanael é outra dessas pessoas que não consigo entender, e até hoje, de vez em quando, penso nele. Penso nele e sinto ódio de mim mesma por fazê-lo. Sei que ele é mais uma daquelas pessoas que vão se perder no passado, pois eu nunca sei o caminho de volta para lugar nenhum. Nem mesmo para casa, para as Montanhas Rossas.
***
Durante todo esse tempo, ainda como Rosa, depois como Asar e seu cão tempestuoso, e ainda depois como Asar e seu Onça bem treinado, durante toda a porra desse tempo, nunca tive nenhuma grande pista sobre o Bruxo Rosamonte.
— Ah, ele está peregrinando pelos templos do Sol Nascente!
— Vi-o passando há cerca de um mês para as Montanhas Rossas.
— Há dois meses atrás esteve por aqui, na Cidade, ajudando os Ministros nos planos da Grande Guerra.
— Dizem que foi engolido por um monstro maligno que estava adormecido nas Minas.
— Dizem que viajou para o Lar Espiritual dos Templos Voadores dos Homens da Floresta no Pico da Neblina Indizível.
Tudo um bando de merda indizível, fofocas estúpidas, pistas falsas e muito antigas, besteiras e crendices.
Por todo esse tempo, foi tudo o que consegui, andando para além de meu próprio país, coisa que é mais perigosa do que soa, visto que estamos em guerra, arriscando perder Onça, meus olhos e único companheiro, arriscando-me até em barcos a vapor, coisas pavorosas e barulhentas...
Tudo, tudo por nada.
É apenas quando minha agradável vida de viajante solitária é interrompida brutalmente que as coisas começam a mudar para mim, e pela primeira vez desde que saí da vila nas Montanhas Rossas tive alguma pista concreta sobre o paradeiro de meu pai.