Últimmas Folhas

8 de novembro de 2013

O Mundo Segundo Rosa Monte [1 de 5]



O Mundo Segundo
Rosa Monte
Noveleta


PRELÚDIO;
PARTE I – Rosa;
PARTE II – Asar;
PARTE III – Valeverde;
PARTE IV – Madras;
PARTE V – Cicatriz
e
EPÍLOGO




PRELÚDIO
Essa é a história de Rosa Monte, não minha, e não me atrevo a me inserir nela, mas é preciso esclarecer certos pontos antes que as minhas transcrições dos relatos dela sejam apresentadas.
Os relatos que se seguem não podem ser confirmados através de fontes oficiais ou por testemunhas oculares, visto que as primeiras não existem, e que quaisquer testemunhas que possam ter existido já devem estar mortas (levadas pela guerra, pelas doenças ou mesmo pelo tempo), mas são relatos verídicos até onde a mente de Rosa Monte pode lembrar-se deles. Não posso dar credibilidade quanto à veracidade de nomes de lugares e pessoas, que podem ou não ser fictícios, apesar de que minha empregadora nunca fez cerimônias quanto a fatos embaraçosos, nem nunca demonstrou nenhuma preocupação quanto à “reputação” de ninguém – nem sequer dela mesma, basta ler seu relato.
Meus serviços foram prestados na melhor forma que pude executá-los, e o pagamento foi efetuado como o combinado. Depois de passar alguns meses elaborando sua história, Rosa Monte partiu sem dizer para onde ia, mas pediu-me para tentar publicar o manuscrito. Concretizo aqui a minha promessa. Sem mais delongas, segue as transcrições da história de Rosa Monte. Que, esteja ela onde estiver, saiba que cumpri minha promessa.
P. R. Vilanova, Verão de 31

I – ROSA

"Eu sou cega".
Essa é uma das primeiras coisas que digo quando conheço alguém. A declaração causa efeitos variados, mais do que uma pessoa que não é cega esperaria. É claro, há um geral acometimento de pena, mas isso é apenas uma onda primeira de sentimento.
Depois da pena, as coisas complicam.
Alguns trazem um pouco de desprezo. Outros ainda mais pena (e esses são os piores). E há ainda aqueles que veem na minha cegueira uma chance de se darem bem às minhas custas — de um jeito ou de outro. Querem tirar minhas roupas, ou meu dinheiro, ou qualquer outra coisa, só pelo simples prazer de enganar alguém tão “indefeso” quanto uma mulher cega.
Sim, as reações são muitas, mas poucas são as boas.
Já tive a sorte de encontrar algumas pessoas que traziam mais do que pena (curiosidade não é exatamente uma coisa ruim, é?), mas nunca fiquei tempo suficiente para perceber qualquer outra coisa além das primeiras impressões – e todo mundo sabe que a primeira impressão nunca dura.
Andando de rua em rua, de cidade em cidade, nunca há tempo para conhecer ninguém além das primeiras impressões. Pelo que eu sei, sou bonita, o que provavelmente deve ajudar ao me julgarem — hipocrisias à parte, uma garota cega e feia não teria muita chance nesse mundo. Não no meu mundo, pelo menos.

***
Nunca conheci nenhuma outra pessoa cega.
É uma coisa estranha de se dizer, mas nunca conheci nenhuma outra pessoa cega. Sei que não somos tão raras assim, mas o máximo que encontrei foi um cigano caolho, o que não é, definitivamente, a mesma coisa que ser cega.
Mas quem sou eu para falar disso?
Na verdade, não sou cega. Não completamente, pelo menos. Quer dizer, posso até sair por aí dizendo que eu sou, mas não é exatamente verdade. Tenho uma miopia estúpida, que só me deixa ver borrões claros e escuros, e não há lente de vidro que dê jeito. Todos os que já testei só me deixaram com a visão ligeiramente menos turva e uma dor de cabeça horrível depois.
Então digo que sou cega, e guardo meu pequeno trunfo de ver sombras para mim mesma.
Quando encontro a saída de um galpão escuro ou sei quando alguém está me deixando para trás, imaginam que sou bruxa. E aí eles param de tentar tirar algo de mim... Pelo menos a maioria deles.
Não me importo que achem que sou uma bruxa — aliás, fico satisfeita com isso. Afinal, posso não ser completamente cega, mas sou completamente filha da bruxaria, apesar de não ser uma delas.
Sei um truque ou dois, nada de fantástico, mas me orgulho do meu sangue.
Então é isso. Você agora sabe meus dois segredinhos — não sou cega e tenho sangue bruxo. Nada de extraordinário, você tem que admitir: a maioria das pessoas não é cega, e sangue bruxo está tão diluído em sangue comum que você pode ter um pouco e nem saber.
***
A um tempo, quando eu estava em Ponta Oeste, uma cidade pequena e árida, uma senhora curiosa sobre a minha cegueira me abrigava em sua casa. Era uma mulher dessas dadas a leituras, já havia sido uma monja ou coisa que o valha... O importante é que ela sabia ler, e gostava de ler.
Então ela fez algo que ninguém nunca antes havia feito para mim. Ela me leu livros.
A maioria eram poemas, alguns breves contos, outros anedotas, e até um livro de sabedorias, mas apenas um romance.
Disse que eu ia gostar. Disse que era sobre alguém assim, mais ou menos como eu. Sobre um homem bastante míope, quase cego (mal sabia ela o quanto eu tinha em comum com este ilustre senhor!), que recebia uma luneta mágica e através dela passava a ver o mundo -- não apenas o mundo, mas também o mal por trás das aparências desse mundo.
A Luneta Mágica, era esse o nome do livro. O autor era anônimo, foi o que ela disse – um livro antigo, cujo nome da pessoa que o escreveu era irrelevante demais para ultrapassar tantas eras. Segundo a Velha Senhora, era "um homem de outras terras e de outros tempos". Era dada a falar difícil, a velha.
Nunca cheguei a terminar de ouvir a história de Simplício e sua fantástica luneta, mas gostei mais do que deveria desse companheiro de infortúnios. Tanto gostei que desde que parti da casa da Velha Senhora um de meus passatempos solitários é imaginar como se sucedeu o resto do caso da luneta mágica... Imagino milhares de diferentes finais, milhares de diferentes situações que meu caro amigo poderia ainda enfrentar antes do capítulo derradeiro... mas são apenas invencionices da minha cabeça.
Temo que nunca tenha a oportunidade de saber que fim levou Simplício e sua luneta.
Ele será como um amigo de aventuras que encontrei, mas do qual me separei e nunca mais vou ouvir falar — que fim levara o meu amigo?
Assim como todos aqueles que encontrei e deixei para trás, não saberei.

***
Não tenho muita noção de tempo, mas sei que viajo já há muitos anos.
Comecei cedo. Lembro que saí de casa com treze anos. Essa é a última idade da qual me recordo. Depois disso, o tempo, os anos, as semanas... tudo se tornou uma coisa só para mim, sem distinção. Se não fosse pela estação das chuvas, eu pouco ou nada saberia sobre o tempo que passou.
Apesar de ter pressa e ânsia em encontrar a única coisa que ainda não encontrei, sei que o tempo que gastei procurando foi apenas necessário — se dez ou vinte anos, não importa.
Ainda me sinto jovem. E como ainda atraio as atenções dos homens, imagino que não seja tão velha assim. Sei que não sou nenhuma senhora, mas também sei que da primeira juventude só me resta a estupidez.
Mas como eu já disse, o tempo não me preocupa.
O que me preocupa é andar por tanto tempo em tantos lugares e ainda assim não achar a única coisa que procuro.

***
Ao longo de minhas viagens, encontrei toda sorte de pessoas, como já mencionei. Encontrei de tudo mesmo, tudo. Do mais terrível ao mais incompreensível. A Velha Senhora que me leu o livro, por exemplo, é uma dessas pessoas — uma dessas raras pessoas — que não consigo entender completamente.
Talvez seja por causa de minha quase-cegueira, ou por meu sangue de bruxa, ou simplesmente porque tenho um dom, mas sou boa em decifrar pessoas. Não preciso da luneta mágica, como precisava Simplício, para ver além das carnes. Nunca há muito mistério para mim em entender a natureza de alguém. Também por isso me chamam de bruxa, quando passo tempo suficiente em algum lugar para minha não-cegueira ser útil de alguma forma e despertar suspeitas.
O mais irônico é que dentre tantas pessoas que encontrei ao longo das minhas viagens, nunca encontrei a pessoa que procurava. Já é hora de falar dele, afinal meu objetivo é contar-lhe minha história, e não falar dessa pessoa é como não mencionar o fedor ao descrever um chiqueiro.
Não sei seu nome verdadeiro, sei apenas que é meu pai. Chamam-no Rosamonte. Bruxo Rosamonte. Minha mãe deu-me seu nome, só que reinterpretado. Disse, porém, que esse não era o nome verdadeiro dele, e eu a acredito. Aprendi, desde cedo, que o poder está em conhecer as coisas. Aquele que sabe o nome d'alma, o verdadeiro nome de alguém, pode ter mais poder sobre essa pessoa do que imagina.
É por isso também que nunca me apresento com meu nome verdadeiro.
Para o resto do mundo além da minha cidade, sou Asar (ou Azar, para sermos mais literais e fiéis à minha sina).
Asar é uma garota cega, andarilha, que luta em brigas de rua, não gosta de jogos de azar, sempre sabe dizer quando alguém está mentindo e nunca fica muito tempo em lugar algum. Nunca andou de trem ou zepelim, e tem medo dessas máquinas de vapor. Fala muito palavrão, faz piadas de cego, adora tomar banho de rio e só dá para um homem se ele for mais inteligente do que ela. Asar procura por um professor — o Bruxo Rosamonte — e daria até o cu para saber onde o maldito se encontra.
Esta é Asar.
Não Rosa Monte, mas Asar.
São duas pessoas diferentes, que como acontece nesse mundo, têm alguns pontos em comum — dentre eles, compartilham o mesmo corpo.

Esta história quem conta é Rosa. Mas a história é sobre Asar.