Últimmas Folhas

31 de outubro de 2013

A Carocha & o Tic-Tac

Tia Carochinha está uma fera hoje.
Há duas semanas foi seu aniversário de... bem, não sei quantos anos, mas sei que foi seu aniversário. E eu, como toda boa sobrinha (sobrinha-neta? Sobrinha-bisneta?), lhe comprei um presente. Ela é uma senhora velha e antiquada, apesar de seus surtos revolucionários, e eu, na minha inocente tentativa de agradá-la, lhe comprei um antigo relógio de pêndulo que encontrei numa relojoaria no centro da cidade. Foi um presente até bastante caro, diga-se de passagem. Jacarandá nunca é barato, mesmo. Tive que tirar dinheiro do meu porquinho (que por sinal, foi um presente dela – demorei três meses pra descobrir como é que se colocavam moedas lá dentro, e pelo menos quatro tentando achar um jeito de tirá-las).
Eu nunca vi um relógio na casa de tia Carochinha, de forma que achei que ela ficaria feliz em ganhar um tão bonito quanto aquele que lhe comprei.
Ledo engano.
Diz ela que o relógio de parede não pára de tocar e resmungar, e que seus gatos só vivem a reclamar do velho pêndulo, que fica pra lá e pra cá. Sete gatos já ficaram hipnotizados, e os outros três que sobraram – Faísca, Holho-Tonto, e Kekulé – estão indignados, pois também temem o relógio que só sabe tiquetaquear as horas que passam.
Eu já tentei explicar à tia Carochinha que essa é, na verdade, a real função do relógio, contar as horas passando. Mas ela parece não poder conceber essa ideia, pois sempre me ameaça com a colher de pau, dizendo que terei que passar cem anos cozinhando pra ela se eu repetir "outra dessas infâmias". E eu já estou condicionada a me encolher toda vez que ela levanta aquela maldita colher de pau.
Eu sabia que ela nunca havia tido um relógio em casa... Só não sabia que ela desconhecia completamente sua função. Tia Carochinha nunca para de me surpreender.

28 de outubro de 2013

durante dois minutos de silêncio


vou lhes contar agora o que pode acontecer durante dois minutos de silêncio.
apenas com essa frase inicial, vocês podem ter imaginado a quantidade infinita de coisas que podem acontecer em dois minutos de silêncio. afinal, apesar do silêncio, o mundo não para, não acompanha nosso luto, nosso momento de estaticidade diante da morte, nossa tentativa de paralisar tudo e pensar apenas no que passou. essa tentativa de paralisar o mundo...
durante dois minutos de silêncio, enquanto o mundo inteiro (ou a maioria maciça dele, como nunca havia se visto antes) está de cabeça baixa, pagando suas últimas homenagens a tantas vidas perdidas num único momento fugaz, tantas vidas espalhadas por todo o mundo... enquanto o mundo inteiro está em silêncio, durante esses dois minutos, muita coisa pode acontecer.
pode acontecer do seu celular tocar, mas, na verdade, isso é bastante improvável (mas não impossível), que todas as pessoas que ligariam para você estão em silêncio também (nem mesmo o tuíter estaria sendo usado). pode acontecer das cabras (ou as vacas, ou as ovelhas, ou lhamas), de alguma forma, arrebentarem a cerca, mas você não ligaria para isso naquele momento. pode acontecer do seu filho menor começar a chorar, mas você não quebraria seu silêncioapenas o abraçaria carinhosamente. pode acontecer do seu microondas apitar, de dois cachorros começarem a brigar, de um copo de vidro cair, da luz queimar, de começar a chover, de passar um avião no céu, de uma mulher estar parindo, de você perder o ponto do bolo, da fogueira apagar, de você engasgar com água. pode acontecer até de alguém ter um infarto num hospital, ou mesmo de ser assassinado num beco qualquer, ou num campo de trabalho qualquer.
pode acontecer de não acontecer nada, e seus dois minutos de silêncio serem precisamente o que devem sersilenciosos.
imagino o que estava acontecendo ao redor de todo o mundo, de todas essas pequenas coisas que podiam (estavam) acontecendo durante aqueles nossos dois minutos de silêncio universal...
as pessoas, em sua maioria, estavam reunidas em praças, parques, em frente a monumentos históricos de seus países, ou a grandes árvores centenárias. os que moravam no campo tinham parado de trabalhar, e nos lugares que ainda era noite, as pessoas levantaram de suas camas e carregaram velas para as ruas. nas igrejas, mesquitas, templos, sinagogas, todos em silêncio.
e eu, como todos os outros, de  cabeça baixa na varanda de casa, de olhos fechados, fingindo que rezava, e na verdade imaginando tudo o que poderia estar acontecendo simultaneamente ao redor do mundo nesses dois minutos de silêncio.
mas o que eu nunca pensei, o que ninguém nunca imagina que pode acontecer, o que jamais passa pela cabeça de ninguém que pode acontecer, é uma bomba H, despercebida, aterrissar na sua cidade, e fazer dos seus dois minutos de silêncio, sua eternidade.
e foi precisamente o que aconteceu durante aqueles dois minutos de silêncio. no mundo inteiro. ou pelo menos, a maioria maciça dele, como nunca havia se visto antes, em qualquer lugar que houvesse uma grande cidade, ou uma média cidade, uma cidadela qualquer...
sorte daqueles poucos que, como eu, não moravam nas cidades.
o problema agora é que somos poucos.
e não temos ideia do que foi aquilo... ou se vai acontecer de novo.