Últimmas Folhas

27 de agosto de 2006

Palavras de Núbia

"Havia algo belo a ser dito. Havia algo fecundo em nossas mentes, há poucos minutos atrás. Mas a distração e o tempo nos faz esquecer. Havia algo que valia a pena ser dito, mas foi esquecido. Tantas coisas foram esquecidas que é difícil lembrar quantas foram, pois desde que o tempo é tempo e que estamos aqui, deixamos no caminho belas coisas a serem ditas. Mas todas foram esquecidas.
O apelo que faço é bastante simples: não se esqueçam tão rapidamente das coisas. Não se esqueçam que existe um céu sobre sua cabeça, que seus olhos são apenas temporários, que a terra sob seus pés também, um dia, vai se dissolver em poeira estelar, até se tornar apenas uma partícula menor do que um átomo. Não se esqueçam de dizer o que tem que ser dito, não se esqueçam de amar, de cuidar do que é de vocês. Não se esqueçam que o Perfeito é frágil. Não se esqueçam que ele também pode ser devastador, quando quer. Não esqueçam
das coisas pequenas e simples e breves desse mundo, pois vocês também são uma delas.
Por essas mãos, faço um apelo. Há oceanos, nuvens e tempos de distância, eu faço um apelo àqueles que vieram antes de mim: não se esqueçam do belo e do Perfeito.
Eu também quero vivê-lo. Eu sou filha do Tempo, dos Pequenos e dos Imperfeitos. Eu sou filha de um Mundo Que Plana sobre o que já foi Perfeito, e sou também uma herdeira do Esquecimento. Vocês, que vieram antes de mim e que talvez se lembrem de coisas que esqueceram de nos contar (a nós, que viemos depois), por favor, eu peço: não se esqueçam. Eu também quero lembrar das coisas belas a serem ditas. Eu não quero esquecer. Eu quero dizê-las.
Mas para que eu possa lembrar, alguém precisa lembrar antes de mim para um dia poder me contar. E assim como eles lembraram, eu farei com os que vierem depois de mim se lembrem também, até que um dia não haja mais dia, e o tempo e as lembranças, junto com esse círculo, se quebrem. Se quebrem e virem poeira estelar - mas poeira estelar repleta de lembranças do Perfeito que ela já foi."

Núbia do Mundo Suspenso.


-- Parte integrante do romance
"O Mundo Suspenso"




"Smaointe" by Enya.

6 de agosto de 2006

Morangos Amargos

Morangos Amargos

Conveniência ou não, egoísmo ou o que seja, medo ou instinto, o fato é que amar é algo necessário. Amar a palavra em forma plena, absoluta, incondicional. Amar a si próprio, a vida - a outros. Outros? Pai, mãe, amigos, memórias - alguém. Alguém? Mas quem? Um namorado ou namorada, talvez? Talvez. Ou amar a si próprio e mais ninguém - ser amado, isso sim. Dez entre dez pessoas querem ser amadas. Mas talvez nem todas queiram amar, e algumas outras ainda querem amar mas não encontram quem. Amar a idéia de amar é uma saída bastante satisfatória, apesar de angustiantemente frustrante.
E é nessas horas que vemos que a frase "quem procura acha" está radicalmente errada. Procurar a quem amar só levará a um único lugar: a sua própria casa, com seus próprios devaneios, comendo morangos amargos e se perguntando "onde estará?". Não, não adianta procurar. Da forma mais moderna ou antiquada, não adianta procurar. Nem em festas, nem em shows, nem naquele Café romanticamente francês ou no teatro Santa Isabel folheado a ouro. Não adianta procurar, você não vai terminar essa busca nunca.
E lá vem, devaneios e morangos amargos - alguém poeta, alguém artista, alguém risonho, alguém leviano. O que seja, parece impossível encontrar. Sentir amor acima do amar, sentir mais do que se pode exprimir ou demonstrar - irracional, nada mais. Mas amores só se acham quando não se procuram. Talvez naquela esquina nada romântica, recheada de lixo em decomposição, onde o mendigo rasteja, a procura de seu amor - devorar seu amor, mesmo podre e obsceno.
Por que deveria-se acreditar em outra coisa mais senão o acaso? Não adianta procurar - sente-se em seu sofá, ligue a TV e engula morangos amargos, banhados em leite condensado.