Últimmas Folhas

8 de novembro de 2013

Attili




Attili suspirou com pesar quando colocou o vaso de cerâmica vazio sobre a cabeça e pensou no que ele significava – nada além do que realmente era: um vaso de cerâmica vazio, acompanhado por outros dois vasos, cada qual com seu desenho próprio, mas todos os três igualmente vazios, e igualmente sua responsabilidade. Sobre sua cabeça o vaso negro se equilibrava, e se tornava uma mera afirmação visual da condição de Attili – uma escrava da Casa das Mulheres do Imperador. Na mão esquerda, acolheu o de cor avermelhada, e na direita, o vaso branco. Seu peso ainda era leve – seria apenas na volta de sua viagem que, já cheios d’água, os vasos arriscariam cair e espatifar-se no chão, causando-lhe ainda mais problemas. Em meio a uma guerra às portas de casa, uma cidade deixada às mulheres sempre se tornava um caos, diziam. E as mulheres da cidade de Abermás não eram diferentes: desde que os homens partiram Attili se viu enroscada em mais problemas e críticas do que poderia imaginar. As mulheres do imperador eram insaciáveis, ela sempre soubera, mas nunca precisara trabalhar tão de perto e por tanto tempo com elas. Na paz, ela quase nunca era requisitada.
Enquanto caminhava pelo pátio pouco movimentado, na primeira luz da matina, a escrava considerava profundamente sua atual situação. Sempre conseguia pensar melhor ao ar livre, e com o sol da manhã ainda tímido por trás das colinas de Leste, tudo parecia descortinar-se à sua frente. De repente, todos os seus problemas pareciam simples ante a luz cálida da manhã, refletida nas pedras lisas e claras do pátio interno. A velha árvore no meio já havia há muito perecido, restando apenas seu tronco retorcido e sem vida, mas era uma bela visão mesmo assim: Attili conhecia o ângulo certo para contemplá-la, de forma que visse o tronco fino e seco, e por trás dele a amurada de pedra clara, e ainda depois, o mar azulado da manhã, e ainda depois desse, as colinas de Leste, – até, enfim, chegar ao Sol. Por alguns instantes, Attili acreditava que se simplesmente caminhasse em linha reta, atingiria o Reino do Sol.
Bastava sentar-se na pedra certa, bem ao lado da bica d’água, enquanto esperava os vasos encherem com o filete de água que saía placidamente da boca da bica.

Attili já estava pronta para sentar-se e realmente analisar seus problemas e suas opções quando viu que não estava sozinha: uma escrava da Ilha de Mel já estava lá, enchendo seus três vasos de cerâmica. Attili a conhecia desde sua infância, apesar de não ter lembranças claras de quando exatamente conhecera a escrava que agora lhe sorria amavelmente e que, outrora, havia servido-lhe de aia. Sua vestimenta beige, que a cobria dos pés à cabeça, denotava que por aqueles tempos estava servindo os poucos homens que haviam ficado em Ilha de Mel.
Ao contrário da companheira, as longas saias de tom arroxeado de Attili, fortemente presas à sua cintura, juntas ao generoso corte de linho branco que lhe cobria o busto e os braços denotavam sua classe superior à da mulher que um dia havia sido sua aia: Attili era uma escrava, sim, mas era uma Alta Escrava. Ela sabia ler e escrever, fora criada para isso. Lia histórias e cartas para as Mulheres do Imperador e escrevia cartas e histórias em seus nomes. Nunca reclamava de nada, nunca levantava a voz: sabia qual era o seu lugar e essa era uma das poucas certezas que tinha na vida.
-- Saudações, Pequena Attili! – cumprimentou-a a outra escrava. – Acaso também é tua obrigação servir de água as jovens Víboras do Imperador?
Attili riu. – Acaso é, sim, mas não se o Imperador estivesse em casa! – se o imperador estivesse em casa, Attili estaria trabalhando na Biblioteca, como sempre estivera desde que completara seu treinamento para ser Alta Escrava.
Isso arrancou uma sonora risada da mulher mais velha, o que assustou alguns anuns que descansavam por sobre um arco próximo.
-- Bem sei que víboras não bebem água, e sim fel! – exclamou, ainda sorrindo. – Mas não falemos muito alto, pois essas víboras podem ser preguiçosas, mas têm ouvidos em todos os cantos!
-- Estás a servir para os homens agora, Mãe Callini? – perguntou Attili, apontando com um gesto o manto beige que cobria suas curvas.
Callini torceu o nariz para aquilo. – Sim, sim, mas já te disse para não me chamares de “mãe”... Fazes me sentir velha!
No auge de seus trinta e um anos, Callini já era considerada velha em Abermás. Entretanto, para Attili, essa “velha” Callini era a velha mais bela de todas as paragens. De corpo esguio e forte, suas coxas eram firmes e seus seios eram belos. Attili sempre invejaria as curvas da mulher mais velha – seu eterno corpo diminuto, sem grandes curvas ou gorduras, era feio e pálido.
Seus traços eram muito claros, e seus cabelos, muito platinados para aquelas paragens em que o cobre e o castanho dominavam. A pele de Callini era reluzente como o cobre, e seu cabelo preto parecia tecido de noite. Os olhos muito grandes eram verdes na luz da manhã, mas castanhos ao meio-dia. Nunca lhe haviam dito, mas Attili desconfiava que houvesse sido escolhida para ser treinada como Alta Escrava por causa de sua peculiaridade física. As mulheres do imperador criticavam sua palidez, a chamavam de “filha de morteiro”, como se ela mesma fosse um cadáver que houvera sido ressuscitado pelo pai pecador.
Attili nunca chegara a conhecer seus pais, nunca soube quem eles eram. Callini, que havia sido sua aia enquanto ela crescia e aprendia os deveres de uma Alta Escrava, havia lhe contado que ela tinha sido encontrada num campo de batalha depois que as tropas de Abermás marcharam por sobre o inimigo do Sul Gélido – o que explicaria suas cores tão pálidas e sua pequenez. O que ela havia aprendido nos Livros era que os povos do Sul Gélido, por viverem em paragens tão inóspitas, não conseguiam crescer muito, e toda a sua cor era sugada pelo sol, ao invés de ser dada por ele, deixando-os pálidos e fracos – física e mentalmente.
Entretanto, e apesar do que lia, Attili suspeitava que nem tudo aquilo era verdade. Afinal, se fosse, os povos do Sul Gélido não estariam causando tantas perdas para o Imperador como estavam agora – aliás, como estavam há quatro meses, desde que as batalhas haviam começado. Aparentemente, eles não estavam muito felizes com o Imperador e suas leis.
-- Sempre pensativa, sim, Pequena Attili? – indagou Callini, piscando um olho. – Esse assunto de Livros realmente deixa as pessoas longe do mundo, certo?
-- E o pior, Callini, é que não posso negar – murmurou Attili, sentando-se em sua pedra estratégica para ter a bela vista do leste. – Apesar de que, nesse caso, penso que é o contrário: eles nos aproximam mais do mundo do que afastam, e por isso nos quedamos pensativos... Sobre o que nos cerca.
Callini deu de ombros para aquele comentário deveras hermético de Attili. Com seus três vasos cheios, a escrava mais velha já estava pronta para ir. Seu sorriso e felicidade diminuíram gradativamente.
-- Tu poderias vir trabalhar na Ilha de Mel – murmurou ela. – Lá, quase todos os Anciãos perderam a vista. Eles precisam de alguém para escrever e ler. Espanta-me que ainda não tenham mandando por teu nome através dos arautos de Abermás.
-- As Víboras do Imperador não permitiriam – foi a resposta de Attili, que já ouvira falar da necessidade dos Anciãos, e que eles já haviam requisitado Attili... O que já havia sido negado pelas Mulheres do Imperador.
Callini entendeu e suspirou. Podia ler a infelicidade nos olhos da jovem escrava, olhos que nunca haviam sido dotados de muita alegria, mas que nos últimos meses haviam definhado quase que imperceptivelmente. Por mais que as outras escravas perguntassem, Attili nunca dizia qual era o problema, nunca verbalizava suas angústias: era um escravo que ela amava e havia sido enviado como bucha de canhão? Era o trabalho com as Víboras do Imperador? Algum outro Livro de Poésias que lera? Era o sangue sulista que chorava pelos irmãos que nunca conhecera? A resposta era sempre não, não, não.
Fosse o que fosse, era algo mais fundo que as palavras, ou mais perigoso se transmutado nelas. Os olhos baços nada diziam, e como que querendo deixá-la mais infeliz, as Víboras do Imperador a fizeram cortar os longos cabelos platinados quando Attili começou a freqüentar constantemente a Casa. Haviam-na feito sentar-se no meio delas, amarrada numa cadeira, cada Víbora com uma tesoura, e haviam cortado seu cabelo virgem, que nunca antes conhecera a frieza de uma lâmina.
Naquela noite, há três meses, Attili correra da Cidade de Abermás à Ilha de Mel para deitar-se em sua antiga cama, na Gruta dos Escravos, onde havia sido criada e educada, e onde havia aprendido o significado da palavra “lar”. A Gruta estava esquecida – os homens haviam sido convocados à guerra, e as mulheres e crianças haviam sido levadas para os porões da cidade, de onde sua fuga ou roubo seria mais difícil. Naquela noite, Attili sentiu falta dos barulhos e dos cheiros que permeavam sua lembrança, mas rapidamente o choro transformou-se em sono e ela agarrou-o, para entrar num mundo de sonhos turbulentos e assustadores.
Agora, meses depois, a jovem escrava não se importava tanto com seu cabelo perdido. Ele voltaria a crescer, ela sabia disso. Não importava o quanto as Víboras do Imperador odiassem seu cabelo, ele sempre voltaria a crescer... E saber o quanto isso frustrava as Mulheres era uma forma de vingança passiva que Attili podia reivindicar.
-- Gostaria de ser o vento, sabes – murmurou Callini, já de costas para Attili, seguindo seu caminho pelo corredor que a levaria para o arco da ponte da Ilha de Mel – gostaria de ser o vento, para poder voar para dentro do teu pensamento e saber o que tanto te afliges.
Attili suspirou. – O vento, mesmo que soubesse das minhas tristezas, não poderia curá-las, Callini... O vento não pode trazer o meu amor de volta.
-- O amor nunca se vai, Attili! – murmurou Callini, espantada, quase deixando o vaso em sua cabeça cair quando se virou abruptamente para a jovem escrava, sentada sorumbaticamente em sua pedra. – Então... É tristeza de amor que vejo em teus olhos! É tristeza de amor, eu sabia!
-- Tal coisa não existe. Tristeza é só tristeza...
-- Teu homem volta, Attili... Teu homem há de voltar! Diga-me qual é o nome, que acendo uma vela para iluminar o caminho até Abermás, Filha Attili! – o desejo de ser mãe em Callini, naquele momento, foi mais forte que sua vaidade. Se ela pudesse clarear os olhos de infelicidade de Attili com algumas velas e sua reza, assim ela o faria.
A Alta Escrava deu um meio-sorriso triste, balançando a cabeça.
Callini largou seus três delicados vasos da Ilha de Mel e correu para a jovem mulher, cujo semblante parecia mais pensativo do que triste. Ajoelhou-se aos seus pés, como a criatura devotada que era, e suplicou:
-- Diz-me qual é o nome! Diz-me e darei uma vela para ele!
Attili balançou a cabeça mais uma vez. – Não é meu homem para dizer-lhe o nome, Callini.
-- Ele é teu, Attili! Se tu o amas, ele é teu! E quando ele voltar, podes pedir permissão para um casório, e se ele já tiver uma mulher, podes tornar-te a Segunda dele! Diz-me o nome, que minhas rezas quase tudo conseguem!
-- O nome dele... Por seu nome quase ninguém o chama... – ela suspirou mais uma vez, contrariada. Quase se arrependendo de ter começado aquela conversa, mas já sabendo que Callini não desistiria, e em seu peito a dor era tanta e a necessidade de confessar havia se tornado tão imensuravelmente insuportável... Attili levantou os olhos para Callini, encarando-a fixamente. – Mas eu, em meu silêncio particular, o chamo pelo nome... Seu nome é Eférido.
O vaso que havia sido esquecido embaixo do filete de água da bica transbordou, mas nenhuma das mulheres fez menção de tirá-lo de lá.
-- Efé----... – sussurrou Callini de volta, sem ousar terminar o nome, e sentiu um calafrio percorrendo seu corpo, como se houvera pronunciado o nome da Bestafera e esta tivesse atendido ao seu chamado.
-- E ele não é meu porque eu o amo, e a tristeza é só tristeza, e não há vela que o traga para mim... Porque quando ele voltar... se ele voltar, não será para mim. Nunca será para mim. Nunca.
-- De onde... Por que... – Callini gostaria de formular milhares de perguntas, mas não conseguia articular nada coerente. Ela encarou Attili, sabendo muito bem que se uma notícia dessas chegasse a qualquer Víbora ou Ancião ou mesmo Nobre Pobre que fosse, sua jovem filha, que não havia nascido do seu ventre, seria atirada às onças num piscar de olhos.
-- Eu vou para o Reino do Sol, mãe Callini – sussurrou Attili, como se realmente acreditasse no que dizia. – Eu vou para o Reino do Sol e lá eu vou ser feliz.
-- Attili... Filha... – Callini levantou-se e abraçou fortemente Attili, que não retornou o carinho, e nem sequer soluçou no abraço. Ela havia se enganado. Confessar não aliviava a dor em seu peito, nem um milímetro sequer. Envolvida pelos braços fortes e perfumados de sua mãe Callini, a Alta Escrava sentia uma estranha sensação, como se tivesse tomado um banho de água quente enquanto bêbada e estivesse com todo o corpo amortecido.
Depois de alguns instantes, e quando o sol já havia se desvencilhado das colinas de Leste, a jovem Alta Escrava também se desvencilhou do abraço, e murmurou, num sorriso calmo:
-- Não é o Fim do Mundo, Callini...
-- Como podes dizer isso? – indagou Callini, cujo espírito sempre fora guiado por paixão, e que por isso já havia sofrido terríveis castigos de seus donos.
-- É como amar a uma estrela. Podes amá-la até que o sofrimento te consuma, ou podes conformar-se que jamais a terá, e contemplá-la até que já não possa mais.
-- O sofrimento não some.
-- Eu sei.
-- O sofrimento não some!
-- Eu sei!
Callini pigarreou. O movimento no pátio já estava começando com maior intensidade, e olhares estranhos já eram lançados a dupla de escravas que conversavam como se fossem Senhoras. Sem dizer mais uma palavra, a escrava mais velha virou as costas e pegou seus três vasos, seguindo seu caminho para a ponte da Ilha de Mel. Attili já havia se arrependido de ter contado a Callini seu grande segredo, assim, num momento tão simples, como se fosse a água da fonte caindo no vaso. A dor não havia diminuído... Mas algo estava diferente.
Quando os outros escravos começaram a observar o esquecimento de Attili com seus vasos de água, ela finalmente sacudiu a cabeça e voltou à sua tarefa diária.
Vasos de água.
Agora cheios, e pesados, e perigosamente equilibrados...
Água para saciar a sede das Víboras do Imperador. Todas as suas trinta e duas esposas, cujos nomes ele mal lembrava, mas cuja aliança era essencial para manter seu Império estável contra o povo das Terras Gélidas e o Povo de Alemmar e Monterrosa. Após o casamento e das núpcias, ele rapidamente se entediava da nova esposa, e a mandava do Palácio para a Casa das Mulheres do Imperador. Contudo, não havia, entre elas, nenhuma mulher pálida do Sul, e Attili desconfiava do por quê. As pessoas de Abermás a consideravam feia, ela sabia. Era o único exemplar do povo do Sul caminhando pela cidade, e ela era feia e pastosa para eles. As Mulheres do Imperador não escondiam seu escárnio – entretanto, parecia que havia uma coisa que elas queriam, que era a platina nos cabelos da sulista, e por isso o cortaram.
Odel, um dos escravos do Roupeiro, havia confidenciado a Attili, sob o risco de ter a língua cortada, que as Víboras haviam guardado os longos cabelos dela e haviam feito uma peruca, que usavam a noite, cada uma por um tempo, e se contemplavam na Sala dos Espelhos. Vaidosas e mesquinhas, essas eram as Víboras do Imperador.
Attili não se importava. Riu internamente, queria poder dizer às Mulheres que sabia de seu segredinho, mas jamais ousaria fazê-lo – não só teria a língua cortada, como provavelmente sentenciaria Odel a um castigo pior. Agora, a Alta Escrava ria de seu impulso tolo. Saber sobre a peruca de cabelos platinados não era nada em comparação ao seu outro segredo – se alguma das Mulheres do Imperador sequer desconfiasse do seu amor proibido, estaria mais do que morta. Era o pior crime que uma escrava poderia cometer. Se soubessem, as Víboras não apenas a matariam, mas fariam questão de torturá-la por longos anos até a hora derradeira.
Se não fosse pelo peso do vaso, Attili balançaria a cabeça. Amar o Imperador Eférido... Tolice de uma escrava sonhadora, com muita Poésia na cabeça, como diria Callini...