Últimmas Folhas

8 de novembro de 2013

Sobre a Hora Derradeira

OU

Mais Outra História Sobrenatural, Mas, Dessa Vez, Real

 

Cujo Subtítulo É:

As Curiosas Histórias de Morte de Ceres Silva, Deána Deák & Milind Thondup




A MAIORIA DAS PESSOAS NÃO PODE NEM IMAGINAR, mas há algo muito pior do que morrer... E não é ter sua alma roubada numa história sobrenatural. Esses ingê-nuos que escrevem sobre almas roubadas, mortes misteriosas, espíritos desencarnados presos a uma casa, maldições lançadas numa família... São todos um bando de ingênuos principiantes.
Aqueles que sabem o que realmente é uma história sobrenatural podem lhe di-zer. Isto é, se algum dia na sua vida você conhecer alguém que realmente entende des-sas histórias. Não é um tipo fácil de encontrar – eles não estão por aí, espalhados em clubes do livro cult, ou assistindo filmes antigos, ou jogando RPG, ou fazendo rituais misteriosos, ou sequer lendo graphic novels... Não, eles estão bem escondidos de tudo isso, porque sabem o que é uma história verdadeiramente sobrenatural, e sabem que não é nada simpático. E aliás, dá um azar danado procurar por elas – você nunca sabe o que pode te encontrar.
Eles sabem que a verdadeira maldição, a pior coisa que pode realmente acontecer a um ser humano não envolve presas, dilaceração, tripas, mortes súbitas, almas roubadas, esquizofrenia, casas do espelho, cartas de baralho, nem nada disso. Eles sabem que a pior coisa que pode acontecer é simplesmente não morrer.
Exatamente.
Não morrer.
Então é isso. Agora você já sabe a verdade sobre histórias de horror e mistério, histórias que envolvem o sobrenatural, o impensável, aquelas que lhe falam dos piores medos humanos... O que todas elas se esquecem de te contar é que não existe pior coisa no universo do que não morrer. E quando eu me refiro a não morrer, quero dizer não morrer jamais.
O quê? Acaso lhe parece tentadora a ideia de viver para sempre?
E que tal a ideia de não poder morrer para sempre? Soa tão tentadora assim?
Se sua resposta ainda for sim, eu tenho uma boa e uma má notícia. Qual você quer ler primeiro? Como sou eu quem escreve as coisas antes de você lê-las, temo que eu tenha que tomar essa difícil decisão por você... Então vamos começar pela má.
A má notícia é que você está terrivelmente equivocado, assim como está terri-velmente equivocado uma pessoa que nunca cozinhou na vida e não sabe como fermento é importante para a receita do bolo.
A boa notícia é que você vai aprender que está errado.
Não me pergunte dos detalhes, mas você vai aprender. De um jeito ou de outro. Pelo menos essa escolha ainda é sua.


TOMEMOS COMO EXEMPLO A HISTÓRIA DE UMA CERTA CERES. Refiro-me a-qui a uma moça de dezenove anos, não a uma deusa grega nem a qualquer outra entida-de misteriosa que acaso usasse um nome incomum assim. Infelizmente para Ceres seus pais eram hippies, e ela acabou com o nome de uma deusa da natureza (colheita, selva, você escolhe).
Mas Ceres, a despeito do nome incomum, era absoluta e completamente co-mum. Do tipo realmente comum.
No auge de seus dezenove anos, tudo o que ela queria era terminar a faculdade de Antropologia, fazer um Mestrado fora do país, publicar muitos artigos científicos, quem sabe um livro, mudar o mundo, morar numa casa à beira-mar e criar futuros filhos com um futuro marido que seria, no mínimo, um Doutor – em qualquer área que fosse.
Então essa é Ceres.
Vê? Nada de extraordinário ou sobrenatural até aqui, apenas ambição desmedida.
Não existiam mistérios em sua família. Ninguém vinha de uma linhagem amaldiçoada. Toda a sua ancestralidade era conhecida, nenhum acasalamento misterioso no meio da noite. Não há casas antigas envolvidas nessa narrativa, nem mesmo objetos misteriosos adquiridos de ciganos ou macumbeiros. Não há histórico de Senhores de Engenho cruéis que por ventura ressurgiriam do além para assombrar seus descendentes (e não que Ceres fosse descendente de um Senhor de Engenho – lon-ge disso, aliás). Não há nem sequer um mero feiticeiro na história toda, diga-se de pas-sagem.
Nem vampiros. Nada de vampiros por aqui. Pra começo de conversa, eles não existem. Pelo menos não no sentido vou-chupar-o-seu-sangue-até-a-morte. Nem lobi-somens. Quer dizer, não há lobisomens nessa história, mas bem que eles podem existir por aí, ainda há dúvidas quanto a sua factualidade.
Como pode ver, não há nada do que você chamaria de “sobrenatural” nessa história. E é isso que a torna mais sobrenatural ainda. A pobre Ceres teve um destino bem pior, bem mais cruel do que todas essas coisas horripilantes poderiam ter providenciado juntas.
A pobre Ceres teve nada mais, nada menos, do que puro Azar, e isso é a coisa mais rara de se encontrar no universo. Azar em estado bruto, o mais puro tipo de azar de toda existência: Azar com letra maiúscula que é pra dar alguma pompa a esse fenômeno absoluta e completamente sobrenatural.
Azar, assim, é mais raro do que Sorte pura.
Está vendo?
Estou lhe contando outro segredo. Talvez mais do que eu deveria contar.
Azar é mais difícil do que sorte. As pessoas adoram culpar o azar por todo tipo de coisa, mas a verdade é que a culpa não é do azar – é, sim, das pessoas. Ou mesmo do destino. E honestamente, a maioria das vezes que nos consideramos com “azar” não é nada disso – é apenas o desvio para alguma coisa afortunada acontecer. Mas azar mesmo é um fenômeno raro. Então pense duas vezes antes de sair por aí dizendo “droga! que azar!”. É claro, há níveis e níveis de azar, assim como existem níveis e níveis de sorte, mas o verdadeiro sentido da palavra “azar”, a sua essência real, não se abate facilmente sobre ninguém. Como eu já disse, é mais fácil você ter uma sorte estúpida e nem notar do que ter um azar tremendo – porque aí sim você perceberia.
Acredite, não é nada fácil conseguir o tipo de azar que se abateu sobre Ceres. Na verdade, foi um Azar tão grande que até ela percebeu que aquilo só podia ser puro e simples Azar – porque simplesmente não havia nenhuma explicação para o que lhe a-contecera naquela tarde ensolarada de domingo (está vendo? Nem noites escuras e de lua cheia temos nessa história...).
Ceres estava sentada no sofá de seu apartamentozinho, ouvindo rádio, quando o Azar se abateu sobre ela. Por uma série de questões cósmicas, temporais, físico-quânticas, matemáticas e históricas, que não convêm explicar aqui (pois, caso contrário, teríamos uma tese em Ocultismo, Paranormalidade, Parapsicologia, Física quântica e Probabilidade, não uma história sobrenatural), o Azar se abateu sobre ela.
Nossa jovem sem sorte estava simplesmente no local errado, na hora errada, no universo errado... e esse Universo acabou punindo-a de forma crudelíssima, além do necessário.
Naquela tarde fatídica de um domingo ensolarado, Ceres levantou-se do sofá para trocar a estação de rádio e escorregou no piso que sua mãe havia recém-encerado... Violenta e rapidamente, ela caiu para trás formando um arco perfeito com seu corpo e bateu a cabeça contra a quina da mesinha de centro, que era feita de um vidro grosso e resistente, mas não tão resistente assim. Quando a cabeça desprotegida de Ceres, numa velocidade estupenda, com um peso estupendo, bateu contra o vértice da mesinha, esta se espatifou, e junto com Ceres, e graças à gravidade planetária, foi ao chão.
E Ceres, nossa jovem de dezenove anos, abatida pelo raro Azar Em Estado Bruto... não morreu.
Observe, ela deveria ter morrido – uma queda feia, um objeto de vidro por perto, o peso da cabeça, somado à velocidade... O que deveria ter se sucedido era um mero (e trágico) acidente caseiro, como acontece todos os dias em todas as partes do mundo.
Mas não foi o caso de Ceres.
Por um acaso do Universo, por um golpe de Azar fenomenal, a jovem Ceres perdeu sua única oportunidade, em toda a linha temporal do universo, de morrer.
Uma chance única, uma experiência obrigatória... E ela perdeu.
Quando Ceres bateu no chão, cercada por vidro quebrado, sentiu uma dor hor-rível no crânio, sua respiração faltou, algo se dilacerou dentro dela (ela não sabia, mas naquele momento estava perdendo sua habilidade de morrer)... E foi só. Não havia san-gue, não havia traumatismo interno, nada. Havia apenas um pedaço de vidro espetado em seu crânio, do qual ela se livrou rapidamente, horrorizada, pra dizer o mínimo.
Ceres estava impecavelmente perfeita, como estava há dois segundos atrás, e como estaria por toda a eternidade: incapaz de se ferir, incapaz de mudar, incapaz de envelhecer e, finalmente, morrer.
Enquanto ela estava deitada ali no chão, cercada pelo vidro quebrado, recupe-rando seu fôlego, Ceres percebeu. Não é o tipo da coisa que passa despercebida por ninguém – quando você tem que morrer, você tem que morrer. E você morre. Quando as coisas não saem exatamente assim, você sabe. Não é algo difícil de perceber.
A maioria das pessoas podem ser bem estúpidas quanto aos planos do Univer-so, mas elas não são completamente alheias a eles – apesar de negar, homens e mulheres sabem várias coisas.
Uma delas é quando temos que morrer.
Não acontece assim, “ah, hoje vou morrer”. Acontece assim: “ih, é agora”. E aí você morre. Tão rápido que não há tempo de avisar ninguém, nem de pensar duas vezes. Você morre.
E foi exatamente esse o pensamento de Ceres: “ih, é agora”.
Mas não foi.
E então, ela percebeu que sabia mais coisas do que imaginava que sabia – e também percebeu que, de alguma forma, havia dado tudo errado, e que o universo conspirou contra ela, e que ela teve um Azar que não merecia, e que ela não teria chance de morrer outra vez, e que ao invés do “ih, é agora”, seu lema atual era “agora já era”.
Ela percebeu tudo isso.
E também percebeu que, dentre outras coisas, aqueles escritores desgraçados mentiam descaradamente sobre as coisas horríveis da vida e da morte... É, não dá pra confiar em ninguém hoje em dia. Nem mesmo nos malditos dos escritores de histórias de horror e sobrenatural.
Ninguém nunca lhe avisa dessas coisas, da verdadeira sobrenaturalidade da vida. É por isso que estou lhe avisando agora.
Se alguém tivesse avisado a Ceres, ela teria percebido, dois segundos antes de escorregar e cair, que o Azar estava sobre ela – se ela tivesse esperado mais um trilési-mo de segundo, ele teria passado, e ela teria morrido em paz. Mas ninguém nunca avi-sou a Ceres sobre isso, então ela só percebeu o Azar quando já era tarde demais.
Então cuidado. Quando você sentir um peso sobre seus ombros além do nor-mal, um apito nos ouvidos e a estranha sensação de que há algo errado... há realmente algo errado. Espere meio segundo, só pra ter certeza, e siga fazendo o que você estava fazendo, pois o Azar já vai ter passado.
O Azar Puro não se manifesta na hora da sua morte – aliás, nunca se manifesta em momento algum, é por isso que foi o dobro de Azar para Ceres, que conseguiu essa raridade justamente no único segundo em que ela não poderia ter aquele tipo de força agindo sobre ela.
Quando for morrer, não tenha pressa. Mas também não se atrase muito, esse é o tipo de encontro que não dá para marcar pra mais tarde. E por favor, verifique a posi-ção dos astros em relação à sua posição na Terra. Não queremos nenhum outro Caso Ceres no universo. Isso seria desastroso.



APESAR DISSO, PORÉM, VOCÊ E EU SABEMOS que Ceres não pode ser a única cujo Azar Em Forma Bruta se abateu justamente na hora da morte. Existem outros aza-rados ao longo da História da Humanidade que, assim como ela, experimentaram esse tipo de fenômeno justo no segundo em que iam morrer. Essas pessoas, porém, não são muitas.
De fato, contando com o recente Caso Ceres, em toda essa longa história hu-mana só houveram... bem, quatro casos de Azar Em Forma Bruta No Segundo De Sua Morte.
O primeiro deles havia acontecido há doze mil anos atrás, e os rastros dessa pessoa já foram perdidos no tempo, apesar dela ainda estar por aí. O segundo caso de Azar Na Hora Derradeira deu-se há cerca de sete mil anos atrás, com uma mulher na atual região da Hungria. O segundo caso havia acontecido há mil e quinhentos anos no Himalaia.
E agora, no ano de 2005, havia acontecido de novo, mas dessa vez no Brasil. Se você for bom de contas, perceberá uma brusca diminuição do período de hiato entre um caso e outro... O que soa alarmante para nós.
É por isso que escrevo isso. Se você sentir os sintomas já citados acima, pare e respire um pouco, e o Azar irá embora. Ele precisa de uma harmonia específica no Universo que envolve miríades de fatores diferentes para poder se conjurar. Não queremos mais imortais andando por aí, além do que, você não gostaria nem um pouco de perder sua Hora Derradeira.
Se você perguntar a Ceres, ou à mulher húngara, ou ao homem do Himalaia, eles vão lhe confirmar. Viver para sempre é insuportável – e o suicídio está fora de questão.
É claro, o caso do Homem Do Himalaia foi um pouco diferente, mas essa his-tória eu não posso lhes contar. No caso dele, seu azar não foi o tipo de azar que se aba-teu sobre a húngara ou Ceres. Em seu caso, o azar foi provocado por um terceiro ele-mento, que empurrou para ele o indesejável destino da vida eterna.
O homem do Himalaia, atualmente conhecido com o nome de Milind Thondup, teve sua morte roubada. Ele não a perdeu, como foi o caso das duas outras imortais, mas não foi menos traumático. Aliás, ouso dizer que foi mais traumático do que simplesmente não ter morrido, porque a ideia de que esse destino de imortalidade não lhe pertencia tornava a eternidade mais insuportável ainda.
Não tenho liberdade para contar como exatamente aconteceu, e mesmo se ti-vesse, não contaria. Esse tipo de informação pode, inadvertidamente, cair em mãos erradas... E já basta de coisas erradas nesse universo.
Ceres, por exemplo.
Se ela soubesse da existência de Milind Thondup, seria uma catástrofe. Aliás, pensando melhor, seria muito mais catastrófico se Deána, a mulher húngara, soubesse do Sr. Thondup; afinal, ela está viva há mais de sete mil anos, e por pelo menos seis mil ela buscou a morte incansavelmente.
Mas se o destino unir Deána a Ceres, não vai haver nenhum grande problema aí – seria até uma forma de acalmar o desejo de morte de Deána, e uma forma de consolar Ceres. Imagino que você já deve ter pensado como é solitário ser imortal. Depois de não muito tempo, todas as pessoas do seu tempo, todas as pessoas que você amou, estarão mortas. Menos você.
Em sua casa, deitada em sua cama na mesma noite do dia em que deveria ter morrido, Ceres ponderava sobre isso, mas ainda com um distanciamento comum de quem acabara de se tornar imortal e tinha apenas dezenove anos.
Já Deána, na Hungria, sete milênios depois de ter nascido, sabia exatamente como era a solidão de um imortal. Aliás, ela sabia muita coisa.
Se existe alguém nesse mundo que sabe a verdade sobre histórias sobrenatu-rais, por exemplo, essa pessoa é Deána. Afinal, ela teve muito tempo para aprender, e posso dizer que aprendeu bem. Depois de sete milênios, a mulher se considerava uma especialista em humanidade. Ela sabia que já havia visto de tudo que havia para se ver nesse mundo, e nada mais a surpreendia (talvez a única coisa que a tivesse surpreendido depois de sete mil anos tivesse sido comida congelada e heavy metal).
Deána sabia de todas as histórias, do que era verdade e do que não era verdade, já havia ido até os confins da Terra procurando a Morte, e tudo o que encontrou pelo caminho foram mentiras. Ela andou por toda a Europa, e depois a Ásia, e depois todas as Áfricas, e depois as terras mais distantes ao norte, e durante todo esse percurso ela não achou nada. Das dezenas de milhares de lendas que Deána aprendeu, todas as histórias sobre a morte de um imortal eram mentiras – ela havia tentado todas as alternativas. Depois de dois mil e seiscentos anos procurando, ela desistiu e voltou para sua terra natal.
Não existe coisa pior para um imortal do que desistir. Para você, um ser humano normal, desistir é uma fase. No caso de um imortal como Deána, porém, seu sofrimento e sua amargura não acabariam, porque ela jamais encontraria a morte de novo. Logo, desistir era a pior tortura de todas. Ela poderia deitar-se no chão, privar-se de comida e água, de sol, de banhos, de tudo – mas ela jamais seria privada de si mesma.
Logo, ela sabia que teria que tentar novamente mais tarde.
Portanto, ela optou pela navegação à Terra Incognita, no seu disfarce de ho-mem.
Ela enfrentou milhares de tempestades, afogou-se em diferentes naufrágios, chegou a ilhotas desertas, encontrou povos diferentes, aprendeu mais outras centenas de línguas. Foi assim que, afinal, chegou com as primeiras embarcações nas Américas. E depois de muito procurar, Deána apenas constatou o que já sabia: não havia como ela morrer (eu não vou mencionar aqui, por exemplo, a sua tentativa de ser canibalizada e morrer porque, bem, não é nada agradável, nem para mim, nem para o leitor). Sua alma estava presa àquele corpo, àquele lugar, àquele universo. Ela estava presa à condição humana para toda a eternidade.
E quando Deána, mais uma vez, retornou a sua terra natal, algo dentro dela havia mudado. Agora, ela não sentia mais a angústia da desistência, ou o desespero da imortalidade, ou sequer a vontade de morrer. Depois de tanto tempo insistindo, depois de seis mil e quinhentos anos insistindo, Deána encontrou dentro de si um sentimento morno e imperturbável. Deána sentiu, pela primeira vez, o sentimento do conformismo.
E foi esse sentimento de conformismo que fez com que no dia em que Ceres deveria ter morrido, no ano de 2005, Deána estivesse cuidando de seu jardim numa ci-dadezinha na Hungria, ouvindo um rádio antigo da década de 1950, que captava ondas curtas, médias e longas, e que estava sintonizado numa estação brasileira. Ela ouvia uma música romântica de Nelson Gonçalves, e cantava junto, no seu bom português, quando ela ouviu uma interferência na transmissão – e essa interferência a fez parar no mesmo instante tudo o que estava fazendo e prender a respiração.
Você deve levar em consideração que depois de sete mil anos de existência, muitas línguas aprendidas e muitas experiências vividas, Deána havia desenvolvido uma sensibilidade que levaria milhares de anos para um ser humano normal desenvolver. Ela, contudo, tinha o que falta aos outros seres humanos: tempo.
Então quando a transmissão de rádio sofreu uma interferência, aparentemente trivial para todos os outros ouvintes, Deána sabia que não havia nada de trivial ali. Ela sabia que em algum lugar perto da transmissão daquela estação algo perigosamente sobrenatural havia acontecido – forte o suficiente para interferir nas ondas de rádio. O que Deána não sabia era que tipo de fenômeno era esse – apesar de sentir cheiro de coisa grande, nunca imaginaria que uma garota de dezenove anos acabava de ter o mesmo destino que ela. Enquanto o rádio chiava, ela olhou em volta, e sentiu uma levíssima mudança nas coisas.
Infectada com o conformismo, porém, Deána não sentiu a menor disposição de ir investigar. O que quer que fosse, não lhe dizia respeito. Afinal, havia acontecido do outro lado do mundo, no Brasil, e essas coisas viviam acontecendo mundo afora. Se ela fosse se preocupar toda vez que uma história sobrenatural acontecesse, ela nem sequer dormiria (e precisaria de um veículo supersônico para viajar longas distâncias em minutos, mas ela não gostava muito de pensamentos cyber punks, afinal, ela veria o futuro de um jeito ou de outro; pra quê conjecturas?).
Seria apenas cinco anos depois de Ceres perder sua chance de morrer e Deána ouvir uma estranha interferência no rádio que elas viriam a se encontrar. Até lá, cada uma seguiria seu caminho do jeito que achava melhor.
No caso de Ceres, “melhor” significava afastar-se da família e dos amigos, trocar Antropologia por Arqueologia e ir fazer um curso de língua de seis meses na Suécia (e quem é que faz um curso de sueco na Suécia, pelo amor de todos os nomes sagrados da História?). E no meio disso tudo, por baixo dos panos, pesquisar incansavelmente sobre imortalidade. Enquanto seus amigos, em cinco anos, tiveram suas feições pelo menos ligeiramente amadurecidas, Ceres continuava com “a mesma carinha de dezoito!” (porque as pessoas gostam de exagerar, e de dezoito para dezenove ela não havia mudado tanto), o que a fazia pensar quanto tempo mais poderia conviver com as pessoas que conhecia sem levantar suspeitas...
Já para Deána, “melhor” era fazer exatamente o que ela estava fazendo nos úl-timos quinhentos anos de vida – cuidar de seu jardim, vender flores e ervas e mudar de região a cada trinta anos. O problema era que a Hungria não era exatamente um país grande, então muitas vezes ela mudava-se para outros países Bálcãs.
Quando ela e Ceres se conhecem, por exemplo, Deána está vivendo na cidade de Sófia, capital da Bulgária, e Ceres estava fugindo por um tempo do seu curso na Su-écia, dando uma volta pelos Bálcãs, acompanhada de amizades extremamente suspeitas.
Antes desse dia, nós achávamos que não haveria nada catastrófico nesse encontro de humanos imortais – o que nós não havíamos previsto é que ao invés do conformismo de Deána contagiar a mais nova imortal, seria a determinação de Ceres que contagiaria Deána.



QUANTO À MILIND THONDUP, ESTE CONTINUA ISOLADO das histórias que entrelaçaram Deána e Ceres. Quando esta última estava prestes a morrer no Brasil, no ano de 2005, o Ilmo. Sr. Milind Thondup tomava chá em sua casa no Timor Leste, absolutamente alheio ao fenômeno fantástico que estava prestes a se suceder há milhares de quilômetros de distância. E quando o acontecimento finalmente consumou-se, ele sentiu uma leve vibração na energia do universo, mas estava tão desatento com seu chá, e não era tão perceptivo quanto Deána, e não tinha nenhum rádio sintonizado numa estação brasileira, que ele nem se deu ao trabalho de pensar muito no fato.
Terminou de bebericar o chá preto e foi dar uma volta com sua câmera fotográfica, sempre a procurar a morte. Seu maior desejo, assim como Deána, era encontrá-la, e por suas andanças no mundo, e como não-havia-morrido de uma forma diferente do típico Azar Em Estado Bruto Na Hora Derradeira, Milind Thondup sabia de algumas coisas.
E com sua máquina fotográfica, procurava a foto da sua vida: a foto da Morte.
Porque, como eu não me canso de repetir, Milind Thondup era diferente de qualquer humano imortal que já pudesse ter existido. Milind Thondup era um homem cuja sorte de morrer havia sido roubada, e ele sabia, lá no fundo, que poderia fazer o mesmo. Ele sabia que podia roubar a morte de alguém e, assim, livrar-se da imortalidade que nunca havia sido destinada a ele.
É claro, não posso entrar em detalhes sobre esse processo – “catástrofe apoca-líptica sem precedentes” é apelido carinhoso para o que aconteceria caso Deána Deák colocasse as mãos nessa informação.
Felizmente, porém, para mim e para ela, Deána Déak não costuma ler contos escritos em português. E espero que continue assim. Afinal, esse conto sobre as não-mortes de Ceres Silva, Deána Déak e Milind Thondup, soará, para doze das dez pessoas que irão lê-lo, como um conto de absurdo. E, mais felizmente ainda, esse conto permanecerá restrito a essas pessoas e a essa língua.
Contudo, esses leitores devem se lembrar de que a moral da história aqui é: cuidado com o Azar, ele pode estar sintonizado com você. A despeito das biografias parciais de Ceres, Deána e o Sr. Thondup, os leitores devem se preocupar com sua posição no universo.
Este conto é um aviso, e espero que tenha sido entendido.
Saravá.


~ Recife, Outubro de 2010









Depois de ler essa história, porém, você deve estar se perguntando: “é só isso? É tudo o que tem a nos dizer?”, e a minha resposta mais honesta seria: “sim, é só, não tenho mais nada a dizer-lhes”.
É claro que há algo maior por trás de tudo isso, é claro que a história não é só essa, e é claro que eu não posso contar mais nada além do que já contei. E pra ser sincero, já contei mais do que pretendia. Afinal, eu só trabalho aqui, não sou nenhuma autoridade, e não ouso desobedecer as que existem.
Fiz minha parte, e espero que você faça a sua.