Últimmas Folhas

5 de novembro de 2013

A História do Colecionador de Relógios



ANTES DE SE TORNAR UMA HISTÓRIA DE FANTASMA



O Sr. Basílio Romano Pontual Neto era um excêntrico, e ninguém tinha dúvidas disso. Até mesmo ele tinha consciência de sua excentricidade. Sua família só mantinha contato porque ele era o primo rico, mas visitá-lo era como penitência para todos. Quando os filhos de seus primos e irmãos faziam por merecer, eram mandados para passar as férias com o tio louco. Sofriam muito, as pobres crianças – na verdade, o Senhor Pontual parecia mesmo que nem tomava consciência da presença daqueles adolescentes perambulando pela sua casa. Seus sobrinhos também não faziam questão de falar com ele. Ninguém, na verdade, fazia muita questão de falar com ele.
O Sr. Basílio Romano Pontual Neto era um excêntrico. Um excêntrico essencialmente por sua fixação. Ele era um colecionador. Um grande colecionador. De relógios. Tinha todos os tipos de relógios: entalhados, de ferro, ampulhetas, de madeira, pretos, grandes, pequenos, de ouro, de bolso, de parede, de sol, modernistas, medievais, antigos, astecas. Eram, ao todo, quatrocentos e quarenta e seis relógios em sua vasta coleção. E claro que, para abrigar tantos relógios, ele também precisava de um vasto espaço: daí a compra da extravagante Mansão Azul, que na verdade era verde.
Tinha vinte quartos ao todo – sem contar os três salões, sete salas, treze banheiros, uma enorme biblioteca, uma grande cozinha, uma baita de uma despensa e um sótão, além das incontáveis ante-salas. Nesse ambiente megalomaníaco e excêntrico, assim como seu dono, o Senhor Pontual organizou sua coleção de acordo com os tipos de relógios, e subdividiu-os por data de fabricação. Ele dedicava toda a sua vida e fortuna aos relógios: era o ar que ele respirava, sua razão de viver.
Ninguém sabia de onde essa louca paixão havia surgido, mas os irmãos mais velhos contavam que desde muito pequeno o Senhor Pontual demonstrava certa indiferença, um tipo de autismo mesmo, com relação a todas as outras pessoas, e ficava fascinado com o tic-tac do relógio de pêndulo da casa dos avós.
Era uma paixão exacerbada pelos tais relógios, o que deixava os empregados um tanto assustados. 

Contavam eles que, durante a noite, era-se impossível dormir, pois os tique-taques dos relógios do senhor Pontual eram simplesmente insuportáveis. Daí a criadagem ter sido reduzida de quinze para quatro pessoas em duas semanas – a governanta, que viera com o Senhor Pontual de sua última morada, uma faxineira, que era surda-muda, um cozinheiro exageradamente ciumento de sua cozinha, e um caseiro que morava numa casinha um pouco distante da Mansão Azul. Vários empregados reclamaram dos relógios, pedindo humildemente para o Senhor Pontual desligá-los a noite, mas o velho era irredutível:
– Sem eles, como conseguiria eu dormir? – retrucava, toda vez que alguém reclamava dos relógios.
Mas de toda a coleção, entre tantos amores de corda, mola e catraca, talvez o que ele mais venerasse fosse o relógio de pêndulo de cento e dezenove anos, que fora herdado de sua avó paterna e recebera um nome: Majestade.
Majestade era todo feito de madeira: das engrenagens aos ponteiros, dos ponteiros ao pêndulo. Tudo era entalhado nos mais perfeitos detalhes em madeira de lei, medindo um metro e sessenta centímetros de altura. Era a obra de arte perfeita em sua opinião. E talvez fosse por esse motivo que ele mantinha Majestade guardado a sete chaves na Mansão. Ninguém podia tocá-lo ou limpá-lo, ninguém podia dar corda nele ou apreciar seus entalhes.
O Sr. Basílio Romano Pontual Neto era realmente um excêntrico. Tinha um amor tão grande por esse relógio, que o separou dos outros relógios de pêndulo da coleção e colocou-o num aposento exclusivamente seu. Os empregados eram proibidos de entrar nessa sala e quando uma vez, por descuido, Marta, a surda-muda, entrou no aposento de Majestade, o Senhor Pontual ficou tão furioso que a obrigou a dormir no casebre do caseiro Vivaldo durante dois meses. Sua intenção inicial era demiti-la, mas a governanta convenceu-o de que seria um desperdício. Ninguém mais aceitaria aquele emprego, mesmo.
E por causa desse fato, por causa desse mínimo descuido de uma pobre faxineira, o Senhor Pontual fez uma obra tão escandalosa quanto a própria Mansão Azul: vedou a porta da sala de Majestade com uma grossa placa de titânio (que custou­-lhe mais do que sua excentricidade o permitia), coberta por cimento e argamassa, e pintou-a como qualquer outra parede, proibindo todos os moradores do lugar de seguirem pelo corredor do quinto e último andar da mansão. Contratou um grupo de pedreiros chineses e um engenheiro alemão, um certo Senhor Schnnauz, e ordenou que este último projetasse na Mansão um corredor secreto, dentro das paredes do lugar, de maneira que mais ninguém pudesse adentrar seu santuário, além dele mesmo.
O engenheiro alemão passou dois meses morando na Mansão Azul, passando a maior parte do tempo trancado na biblioteca com o Senhor Pontual, que parecia mais cansado que o próprio engenheiro ao final de cada dia de trabalho. Usavam todas as plantas do lugar, até mesmo as plantas externas, que mapeavam toda a propriedade – do açude dos Milagres à Mansão Azul.
E, quando finalmente o projeto estava pronto e os pedreiros chineses chegaram ao Brasil, os quatro empregados do Senhor Pontual foram dispensados por onze meses, lhes sendo concedida uma passagem de avião para “onde diabos eles quisessem ir” – palavras do Senhor Pontual.
E por dez meses não se viu o Senhor Pontual.
E por dez meses os pedreiros trabalharam na mansão.
Na vizinhança, só se ouvia o martelar das obras megalomaníacas e secretas ecoando por todos os cantos da cidadezinha. Um moleque fora contratado para comprar comida para a Mansão Azul, e veio dele a notícia de que o Senhor Pontual parecia dormir apenas três horas por dia, e que quase não tocava na comida comprada, pois a cada dia que se passava ele parecia mais magro. Empalidecera, pois há muito não via a luz do sol, e a voz soava áspera, como se ele estivesse tendo uma eterna crise de tosse.
Após três meses do trabalho do corredor secreto ter-se iniciado, foi requerido a Toquinho (o moleque contratado) que comprasse alguns remédios na farmácia da cidade. Todos desconfiaram para quem seriam os tais remédios.
Finalmente quando o prazo para a construção do túnel na mansão esgotou-se, os pedreiros chineses saíram da casa de Senhor Pontual com suas passagens de avião para a China, e o engenheiro alemão, Senhor Schnnauz, com sua passagem para a Alemanha.
Nunca mais se ouviu falar neles. Duas semanas depois da obra aparentemente completa, contudo, o Senhor Pontual não havia dado sinal de vida. Nem sequer entrara em contato com sua governanta para chamá-la de volta ao trabalho.
Todos temeram o pior.
As pessoas já estavam preocupadas com o desaparecimento do velho colecionador de relógios, e quando já pensavam em chamar a polícia para entrar na mansão, souberam que ele havia chamado de volta seus criados – a governanta Hilda, Marta, o cozinheiro Alberto e o caseiro Vivaldo. Assim a tensão aliviou-se na cidade.
Quando os empregados voltaram para seus antigos postos, correu um boato de que eles, que há muito tempo trabalhavam lá, não notaram nada de novo, exceto muita sujeira e um quadro de Majestade no lugar da antiga porta da sala exclusiva.
Na biblioteca, onde os Senhores Pontual e Schnnauz trabalharam de maneira tão árdua, só restou pó como lembrança da imensa obra que havia sido realizada. Todos os cantos estavam infestados de pó: dos livros ao assoalho, do assoalho ao enorme quadro com a imagem de Mqjestade logo atrás do bureau de Senhor Pontual. E todos os corredores também estavam repletos de poeira.
Os boatos correram soltos depois que os empregados relataram o estado das coisas na Mansão Azul. O próprio Vivaldo fora verificar o corredor do quinto andar, que agora tinha uma porta a menos – disse ele que batera em toda a superfície da parede e não detectara nenhuma discrepância de som que indicasse um quarto oculto. A teoria que tomou fôlego foi a de que o Senhor Pontual trocara o quarto de lugar, e que era, na verdade, um quarto que se movia pela estrutura interna da casa, nunca estando num mesmo lugar por mais de um dia.
Outros diziam que era tudo besteira, e que o Senhor Pontual já devia ter destruído o maldito relógio num surto de loucura, e que todo aquele carnaval na Mansão Azul era para disfarçar seu desespero.
E assim a vida seguiu: tudo voltando ao seu estado habitual, exceto pela palidez e a eterna tosse do Senhor Pontual, que nunca mais saíra de sua Mansão, e era visto apenas por seus empregados.
E desde então nada mais se soube sobre o corredor secreto ou qualquer outra coisa que se relacionasse à Majestade. Aqueles três primeiros anos da vida de Senhor Pontual na Mansão Azul foram bastante tumultuados, e sem as visitas punitivas de seus sobrinhos. Mas de fato, ele e sua obra excêntrica deixaram marcas evidentes naquela cidadezinha que raramente via algo acontecer.
Nada de surpreendente seguiu-se à volta dos empregados da Mansão Azul, e rapidamente o Senhor Pontual e sua obsessão por relógios tornou-se fato consumado no lugar, quase uma lenda urbana.
O Sr. Basílio Romano Pontual Neto era realmente um excêntrico, e ninguém tinha dúvidas disso. Até mesmo ele tinha consciência de sua excentricidade. De fato, talvez ele tivesse mais consciência do que muitos à sua volta. Porque depois de algum tempo os cochichos sobre ele morreram, e os anos passaram, e apenas os mais velhos comentavam.
A família não veio mais visitá-lo. Seus sobrinhos agora haviam crescido, e seguiram seu próprio rumo. Não queriam saber das histórias loucas sobre o tio distante. A herança do velho milionário, porém, era bastante desejada. Mas mais desejada ainda era a verdade sobre que fim levou o relógio de pêndulo que o Senhor Pontual tanto amava. Fortunas haviam sido oferecidas para aquele que conseguisse ao menos uma prova física da localização da peça, mas com a reclusão cada vez maior do Senhor Pontual, tornou-se virtualmente impossível fazer visitas à Mansão. Depois da notícia de sua construção megalomaníaca, a família que outrora o tolerava devido à sua riqueza, agora não queria mais saber dele. Estavam quase certos de que, depois de uma insanidade daquelas, não deveria ter-lhe sobrado muito dinheiro.
O Senhor Pontual, porém, recluso em sua Mansão, nunca mais disse uma palavra sobre seu querido Majestade. Todos aqueles anos, e nenhuma palavra. Era como se o fato jamais tivesse ocorrido. O excêntrico Senhor Pontual manteve seu silêncio... Até o dia em que mesmo se quisesse, não poderia dizer nada.

Apenas dois dias depois do ocorrido, e cinqüenta anos após as misteriosas obras na Mansão Azul, toda a família – ou pelo menos a maior parte dela – estava reunida para a leitura do testamento do falecido Senhor Basílio Romano Pontual Neto. Os últimos desejos daquele excêntrico eram uma lista. Uma lista igualmente excêntrica.
O primeiro item da dita lista era relativo a seu patrimônio bancário. Sua fortuna seria toda doada a um orfanato específico, em sua antiga cidade natal, onde, escrevera ele, havia morado seu melhor amigo de infância – fato que nenhum de seus irmãos se recordava, e o que os deixou possessos, quando perceberam que a tal riqueza não estava tão mirrada quanto eles imaginaram.
Seu segundo desejo era o de que os empregados fossem dispensados, a exceção do caseiro Vivaldo, que ficaria encarregado da manutenção da propriedade e garantiria, sozinho, que a Mansão fosse preservada.
Nenhum dinheiro seria deixado para os parentes nem empregados. Nenhum dinheiro seria deixado para a manutenção da casa. De fato, a própria Mansão Azul seria selada. O acesso à propriedade, escrevera ele, era proibido. Ninguém mais entraria lá, de acordo com o testamento do excêntrico Senhor Pontual.
Desnecessário dizer que o testamento do meu querido Senhor Pontual revoltou a todos, incluindo os empregados fiéis daquela casa e daquele homem.
Uma única exceção havia sido feita: caso seus sobrinhos ou empregados se interessassem – e apenas esses –, poderiam ter para si toda a propriedade da Mansão Azul. Havia apenas uma condição: encontrar o quarto selado de Majestade sem entrar na Mansão. Era sua única exigência. Havia escrito ele: aquele digno de possuir minha propriedade, minha Casa, meu tesouro de coleção, é o único com habilidade para encontrar Majestade em seu Aposento de Repouso, e assim mostrar-se digno de ser meu herdeiro. Não há entre meus irmãos e primos ninguém com tal habilidade, eu já o sei; mas meus jovens sobrinhos, por mais detestáveis que sejam, não demonstram ter o mesmo raciocínio constrito que seus pais.
E ele ainda acrescentava: e caso não haja entre meus sobrinhos ou os filhos de meus sobrinhos aquele com a perspicácia necessária para tanto, o futuro da Mansão Azul será a demolição, sem a retirada de nenhum objeto do interior da casa. Não há sentido em manter minha amada coleção viva se não há ninguém capaz de apreciá-la da forma correta.

Logo, a história do Senhor Pontual e sua obsessão por relógios virou história de fantasma. Os sobrinhos não deram tanta atenção ao testamento quanto se imaginaria. Não lhes parecia uma boa opção perder tempo e sono pensando um quebra-cabeça do qual não se tinha nem sequer uma peça.
O que eles não entendem é que todas as peças estão bem ali, na Mansão Azul e na cidadezinha. E mesmo até no testamento do querido Pontual. Fazê-los enxergar isso, no entanto, está além de minha capacidade.
O fantasma do Senhor Pontual agora assombra não apenas sua Mansão Azul e o caseiro Vivaldo, preso àquele lugar, mas a própria cidadezinha e a cada morador que nela vive. Os mais velhos contarão histórias aos mais novos, que irão ou não desdenhar delas, e o fantasma do excêntrico Senhor Pontual irá assombrá-los através do tiquetaquear de seus relógios. E dos relógios ninguém pode fugir.
De fato, todos parecem procurar a presença desses pequenos seres tiquetaqueantes. Eles o carregam consigo em suas bolsas e pulsos; em seus pequenos brinquedos eletrônicos; em cada cômodo de suas casas e em seus escritórios; espalhados pela cidade, escondidos em cada esquina.
E em cada tique-taque que se ouve o Senhor Pontual e sua história de fantasma é lembrada. O Senhor Basílio Romano Pontual Neto sempre fora um excêntrico em vida – e não será diferente após sua morte.
Muitos me perguntam de sua história, de como ele era antes de morrer ou antes de "enlouquecer", mas isto é tudo que posso lhes contar. E essa minha história não é sobre um fantasma chamado Senhor Pontual, mas sobre um homem, de carne e sangue. Um homem que nunca sonhou em ser fantasma, mas em apenas apreciar sua amada coleção de relógios e passá-la a alguém digno.
Se há ou não um fantasma dentro daquela Mansão, guardando as centenas de relógios abrigados lá, eu não sei.
Sei apenas que a cada tique-taque que ouço do meu relógio de parede, posso ouvir o sussurro rastejante do Senhor Pontual em meu ouvido, pedindo, implorando, para não ser esquecido... Nem ele, nem seus relógios ou o tempo que eles contam.