Últimmas Folhas

7 de novembro de 2013

O Amor do Príncipe



ACONTECE que depois de ouvir uma história tão fantástica quanto aquela, que envolvia uma linda princesa adormecida, num rico castelo, por trás de um muro de espinhos e um profundo fosso, a imaginação do jovem príncipe foi à mil. Que segredos, que belezas, que riquezas se esconderiam ali! Uma bela princesa amaldiçoada, apenas esperando pelo seu beijo! Aquela seria sua história, pela qual ele ficaria conhecido por toda a eternidade... Contrataria trovadores para escrever sua lenda, espalharia seu feito heróico por todas as terras, por todos os povos, por todos os séculos!... O jovem príncipe entraria para os Anais da História como o grande guerreiro que ousou penetrar tal castelo encoberto por espinhos e esquecimento!
As histórias dos velhos moradores daquela vila quase abandonada haviam criado na mente do príncipe um amor glorioso, um feito memorável, a história que ele estava esperando para protagonizar. Nada tiraria isso dele e, enquanto cavalgava, acompanhado por seu escudeiro; um velho local; e seu menestrel, Alaric, o jovem príncipe pensava na bela noiva adormecida que o esperava na mais alta torre do castelo. Ela seria linda, delicada, e o amaria com todo o seu ser. Nesses cem anos que permanecera adormecida, ela devia ter sonhado com seu rosto, ansiado por seu beijo, imaginado o seu toque, que não poderia ser confundido com nenhum outro. Ao longo do caminho, o príncipe quase se convencera de que por toda a sua vida havia sonhado com aquela princesa adormecida, apesar de nunca ter ouvido falar dela antes.
Seu avanço era lento: a estrada para o castelo há muito havia sido encoberta por vegetação selvagem, as raízes e as pedras no caminho faziam o avanço do cavalo lento e sôfrego. O velho reclamava de cansaço: apesar das moedas que o príncipe havia-lhe prometido, era velho e reclamão, e não se satisfaria enquanto não pudesse arrancar mais umas moedinhas do nobre. Seu escudeiro, por sua vez, estava assustado com aquela viagem para encarar um castelo amaldiçoado – tinha pavor de magia e tudo que estivesse relacionado a ela. Alaric, o menestrel, parecia ser o único tão entusiasmado quanto o próprio príncipe, mas isso não limpava o caminho a sua frente nem ajudava no avanço montanha acima.
Ao todo, o grupo levou quatro dias para escalar o caminho encoberto por floresta, e quando finalmente chegaram ao topo da montanha, onde se quedava o castelo adormecido, o Príncipe estava resoluto em sua ideia de amor eterno e riqueza que aquela pobre princesa adormecida lhe prometia. A caminhada de sol a sol, o cansaço e a fome haviam misturado-se no jovem Príncipe, resultando num amor incondicional e inquestionável – ele estava apaixonado pela princesa amaldiçoada, não havia dúvidas quanto a isso. Enquanto eles subiram, por aqueles quatro dias, o Príncipe sentara-se com o menestrel Alaric e relatara-lhe sobre o seu crescente amor.

 
“Parece que quanto mais nos aproximamos, mais eu me apaixono!”, confessou ele, na terceira noite de caminhada. Alaric, como todo bom menestrel, tomava nota dessa bela história de amor, gravando com tinta e pele os devaneios românticos do seu mestre, o Príncipe. Também ele ansiara por uma boa história para contar, e quando primeiro ouviu sobre a bela adormecida no castelo, convenceu-se de que finalmente havia chegado a hora do seu príncipe – e, consequentemente, a sua hora também.
Quando se depararam com o grande muro de espinhos, a comitiva desanimou. O velho argumentou que dali nada valeria: quando nascera, o castelo já estava amaldiçoado, ele nada sabia sobre os caminhos para depois do muro de espinhos. O príncipe lhe pagou a quantia que eles haviam combinado (com alguns adicionais ao longo do caminho) e o velho foi embora, aliviado por deixar para trás o castelo misterioso.
Com apenas seu escudeiro apavorado e seu menestrel que de pouco servia numa luta, o Príncipe seguiu: devia haver alguma forma de penetrar o castelo, ponderou ele.
E, de fato, havia. Sem demora, o Príncipe viu uma brecha no muro, que não era suficiente para ele passar, é certo, mas que era suficiente para visualizar o que havia por detrás do muro: um castelo adormecido, envolto em sombras, apesar de ser dia.
O Príncipe inclinou a cabeça para ver melhor pela fenda, e foi então que se aproximou demais e, inadvertidamente, cortou o rosto num dos espinhos do muro. Foi o que bastou para o denso emaranhado de roseiras recuarem: uma gota de sangue do Príncipe certo fez com que os espinhos minguassem para a terra, deixando o caminho livre para o prometido da princesa adormecida.
O escudeiro apavorou-se, e debandou: deixou para trás seu príncipe e o menestrel, tamanho era o pavor que sentia ante aquela magia infernal. Havia sido criado para temer tais artifícios ardilosos, e suas crenças, naquele momento, foram mais fortes que seu compromisso para com seu mestre. O Príncipe, porém, pouco se importava com o abandono do seu serviçal. De princípio, é certo, ficou surpreso, mas nada havia de nublar sua determinação em encontrar sua bela princesa.
Restando apenas ele e Alaric, o menestrel, a dupla seguiu, cruzando a ponte sobre o profundo fosso ao redor do castelo, até o pátio interno central, onde mulheres, crianças e animais dormiam. O menestrel a tudo olhava, abismado, enquanto que o Príncipe pouco caso fazia daquelas proezas.
“Até as moscas nas paredes dormem, meu senhor!” exclamou Alaric, espantado, mas seu príncipe não lhe deu muita atenção: ele queria encontrar o caminho para a mais alta torre daquele castelo.
Enquanto Alaric parava de pessoa em pessoa, sacudindo-as, vendo-as respirar lentamente (algumas, até, roncando), num sono ininterrupto de cem anos, imperturbáveis e completamente vivas, seu príncipe rondava o pátio, em busca da entrada mais próxima para a torre central. Por fim, decidiu-se pela entrada central, e a galope, arrebentou as portas de madeira que a cerravam.
Seu menestrel, até então distraído com as tais proezas mágicas, finalmente despertou de seu espanto e correu atrás de seu senhor; afinal, tinha que registrar tudo que se passava, até o momento derradeiro, o encontro com a princesa adormecida.
Não era tão simples quanto parecia: por horas eles percorreram salões, escadarias e corredores, sem nunca encontrar as escadas ou a porta que levasse até a torre mais alta. Percorreram as cozinhas, os salões de festa, o trono do rei (onde ele e sua esposa dormiam placidamente em seus cadeirões), as escadas mais estreitas, e nada encontravam.
Será que havia outro feitiço escondendo o caminho para a torre da princesa?, ponderou o menestrel, mas seu príncipe não lhe dava mais ouvidos: desde que entrara no castelo adormecido, um desejo louco de encontrar sua princesa havia tomado conta de seu ser. Nada mais interessava, nada mais era importante.
Foi apenas quando o sol já se punha que Alaric, já cansado de todas aquelas pessoas dormindo, descobriu o caminho para a bela adormecida daquele castelo. Gritou por seu mestre, que dessa vez, ante às palavras “princesa”, “achei” e “caminho”, galopou alucinadamente em sua direção.
A porta que Alaric havia descoberto levava por uma escadaria estreita em caracol: percorrer aquela subida com o cavalo de batalha estava fora de questão, o Príncipe logo percebeu, e ordenou: “Alaric, guarde meu cavalo!”.
Alaric, no entanto, não era um cavalariço, e sim um menestrel, de forma que sabia que sua função era registrar o encontro derradeiro, e não cuidar do cavalo do Príncipe. Ele também sabia, pelo que havia observado recentemente, que a paixão do Príncipe havia se sobrepujado ao bom senso, e que mais tarde ele agradeceria ao menestrel por ter desobedecido suas ordens e, ao invés de ficar para trás, ter seguido seu mestre até a Torre Mais Alta, a fim de registrar o grande momento.
A passos cautelosos, Alaric alcançou o último patamar, onde encontrou a cena perfeita: seu Príncipe estava inclinado por sobre uma belíssima cama de dossel alto, por onde rosas espinhosas cresciam, e a tênue luz do pôr do sol acertava em cheio a cama. A dama que ali se encontrava era de uma beleza pueril, que Alaric jamais havia visto antes, cujas maçãs do rosto eram rosadas, e cujos cabelos dourados emolduravam-lhe não só o rosto, mas também todo o corpo, longos do jeito que eram. A moça, que não devia ter mais de quinze anos, parecia um anjo dormindo sobre raios de sol.
O jovem menestrel também podia identificar a beleza do seu próprio senhor, enquanto olhava, mesmerizado, para a bela adormecida a sua frente: de fronte forte e máscula, seu queixo era quadrado e seu nariz, romano. Os olhos profundamente verdes do príncipe estavam enevoados de lágrimas, parcialmente escondidos pelos cabelos negros que lhe caíam por sobre a testa. A suave barba que surgira nesses quatro dias de estrada dava-lhe apenas um tom ainda mais forte e elegante.
Alaric já havia puxado pena e tinteiro para começar a escrever freneticamente quando, enfim, o Príncipe fez menção de se inclinar um pouco mais, na direção do rosto encantador da menina. O menestrel, envolvido pela cena, viu-se incapaz de desviar o olhar daquele momento: sentia que presenciava algo que muitos milhões de pessoas, num futuro nem tão distante, adorariam ver por si próprias, mas não poderiam. Em respeito a todas essas pessoas, e a si próprio, Alaric, então, conscientemente abriu mão de começar a escrever seus relatos e apenas assistiu a cena, como o bom espectador passivo que qualquer menestrel é.
Ele podia ver no olhar de fogo do Príncipe todo o ardor daquela paixão que ele criara para si nos quatro dias de jornada, como se por toda sua vida houvera sido enamorado daquela princesa desconhecida. Alaric observou como, lentamente, ele se inclinava sobre a menina e, mais lentamente ainda, cerrava os olhos e tocava, suavemente, seus lábios contra os dela.
Como a lenda que ouviram havia professado, bastou beijar-lhe os lábios que, lentamente, os olhos da princesa abriram-se e, como que acordando de um simples sono, a menina pestanejou e mirou, confusa, a face ardente do Príncipe inclinado sobre ela.
Alaric estava pronto para ver o olhar dela se suavizando, o sorriso se abrindo, o amor se acendendo em seu peito. Ele estava pronto para ver ela erguendo-se lentamente, apoiada nas mãos, para depois ser ajudada por seu príncipe encantador, estendendo-lhe os braços, até finalmente ficar de pé, frente a frente com ele, enfeitiçada por aqueles olhos verdes, e dizer:
“Meu amor...”
O que, porém, Alaric não esperava era que, quando a bela princesa pronunciasse as primeiras palavras para o corajoso nobre que havia escalado a montanha e atravessado muros de espinhos, a paixão ardente e arrebatadora no olhar do Príncipe simplesmente... se apagasse.
O menestrel poderia dizer o momento exato em que aquilo acontecera, o momento exato em que o Príncipe olhara, francamente, para a princesa, e não havia amor em seu olhar.
O Encanto havia-se quebrado.
Por todo o castelo, o sono finalmente era erguido e dissipado como que pelo vento: Alaric agora ouvia o som de pássaros e cachorros, o burburinho do pátio interno, crianças gritando, a algazarra usual de um castelo vivo e habitado por pessoas.
E ali, parados a sua frente, estavam o príncipe e a princesa cujo final da história ele havia planejado contar como “e foram imensamente felizes até o fim de seus dias”, mas que agora, observando a paixão ardente do Príncipe transformar-se em alheamento e, deste, para a simples repulsa, virou o mundo literário de Alaric de cabeça para baixo.
“Meu príncipe?”, murmuraria a Princesa recém-desperta de um sono de cem anos, confusa, quando visse seu querido amor dar um passo para trás e soltar-lhe as mãos.
O Príncipe, por sua vez, sacudia a cabeça, indignado. “Vós sois tão...” murmuraria ele em resposta “...diferente do que imaginei”.
Alaric quase derramou toda a tinta no chão naquele momento. “Meu Príncipe!” exclamou ele, interferindo a cena que saía errada. “Esta é vossa Princesa, a Bela Adormecida do Castelo Encantado, a menina Rosa de que todos lhe falavam e pela qual vós vos enamorásseis!”
O Príncipe sacudiu a cabeça, revoltado. “Não! Essa menina...” ele exclamou, ofendido. “É só uma menininha... Tão... Sem encanto!”
A Princesa levou uma mão à boca, chocada. Alaric arregalou os olhos: seus sonhos literários estavam sendo esmagados na sua frente. O encanto do castelo havia sido quebrado... Assim como o encanto da história para o Príncipe.
“Mas... meu Príncipe! Eu mesmo ouvi de vossa boca o quão enamorado estavas, o quanto queria encontrar o castelo, quebrar o feitiço...”, mas os argumentos do menestrel não foram ouvidos, e isso ele percebeu: a cada palavra que dizia, o Príncipe balançava a cabeça negativamente.
“Um sonho, um sonho... Um sonho louco!” exclamou ele, horrorizado. “Nunca amaria uma menina sem graça como essa!” a Princesa, ainda em choque, não demonstrou reação física ao comentário ofensivo, mas Alaric estava a beira de um ataque de indignação. “Eu amava a glória! Eu amava a ideia! Eu amava a ideia de derrotar um feitiço de cem anos, de beijar uma princesa amaldiçoada... Mas agora... Agora que está tudo feito... Essa Princesa... Essa menina... Eu não poderia amá-la!”
A Princesa caiu de volta na cama, chorando copiosamente.
“Não! Não! Não!”, a angústia e a indignação do menestrel causavam-no dor física. Tudo estava errado, tudo! O menestrel correu para a moça e alisou seus cabelos, numa vã tentativa de acalmá-la.
“Meu Senhor!” gritou Alaric, quando ouviu passos na estreita escadaria que levava à Torre Mais Alta. “Não dizeis isto! Vossos anfitriões sobem as escadas, querem um noivo para sua Princesa! Querem o Príncipe que está destinado a casar-se com ela, meu Senhor!”
“Não!” exclamou o Príncipe. “Não me casarei!”
“Vós sois o Príncipe da lenda!”
“Não me casarei!”
“Mas meu Príncipe!...”
Não me casarei!”
Em questão de segundos, o menestrel tomou uma decisão: não permitiria que uma história dessas fosse destruída pelas teimosias de um mero Príncipe. Havia coisas maiores do que ele... Como os sonhos ambiciosos dum menestrel em busca de uma história.
Num impulso repentino, Alaric puxou a espada da cintura real, bem como o chapéu de penas de sua cabeça, e armou-se como o próprio Príncipe faria. Tirou seu colete velho e trocou-o pelo colete brocado do Príncipe. Estavam ambos sujos pela escalada da montanha, o Príncipe há muito havia perdido seus trajes mais ricos e, assim, se olhados lado a lado, não conseguiriam distinguir com facilidade um nobre de um trovador.
E foi assim que Alaric, o menestrel sem título ou nome, tornou-se o Príncipe da lenda, quando irromperam no quarto da Torre Mais Alta o Rei e a Rainha, seguidos de seu séquito, alheios ao conflito que não deveria existir no coração ambicioso do verdadeiro Príncipe. Este último, atento ao movimento do serviçal, fez-se ele mesmo de menestrel, segurando a pena e o tinteiro, e curvou-se diante do Rei daquele lugar.
Foi embora, mas não sem antes finalizar a própria história, cujo protagonista, ao final, fora outro, com um “e viveram muito felizes para todo o sempre”. Como pagamento pelo favor do menestrel, jurou divulgar a história registrada.
Seguiu sozinho e sem cavalo para o seu próprio reino, onde foi bem acolhido ao voltar, e passou muitos anos em busca de uma bela princesa a quem pudesse amar. Ao final de sua vida, porém, tudo o que o belo Príncipe havia amado foram as histórias e as glórias que elas prometiam: nenhuma princesa ao final de sua jornada lhe encantava.
O amor do Príncipe nunca fora além das lendas: o amor do Príncipe, depois que vencia sua jornada, de nada valia, pois o que ele amava verdadeiramente era a aventura, e jamais o seu objetivo. O amor dum príncipe que, quando acordava a princesa, percebia que nunca a amara verdadeiramente: ele também acordaria de seus devaneios.
Alaric, por sua vez, foi Príncipe por alguns anos: não durou muito, e ele fugiu daquela Princesa enfadonha e mimada, bem como de todo aquele reino bajulador. Com a ajuda de um fiel servo, que passou a ser seu fiel amigo, Alaric forjou a própria morte na floresta e fugiu para nunca mais voltar, entregue novamente à estrada e às histórias.
E essa, caros leitores, é a verdadeira história de Briar-Rose, ou a Bela Adormecida na Floresta, ou simplesmente Bela Adormecida, como queira intitulá-la. O fato é, o Príncipe, depois que se desencantou, partiu para outras aventuras... Mas essa é outra história.

E aqui contei um conto, que espero fazer sorrir,
E se alguém quer contar melhor, vai ter é que mentir.

~ fim ~