Últimmas Folhas

7 de novembro de 2013

Projeto Pano Preto

sala branca


Eles a haviam trancado naquela sala branca, que quase a deixou cega no início. Precaução, eles disseram. Apenas precaução. Por quanto tempo, ela havia indagado, escondendo o pânico claustrofóbico que apertava sua garganta. Dois meses. Isso se tudo corresse normalmente.

Dois malditos meses. Sozinha naquela sala branca e sem janelas.



Havia um painel, 3m por 2m, de uma campina verde florida, um céu muito azul. Depois de três dias, ela não agüentava mais aquela imagem. Queria queimá-la, mas não tinha como. A princípio, ela tivera esperança de que além da cama, do abajur e do que se passava por um banheiro, eles deixassem que ela trouxesse para o isolamento livros e cadernos. Afinal, ela precisava de um passa-tempo – literalmente, um *passa* tempo. Mas não. Aliás, eles pareciam querer evitar especialmente folhas em branco e canetas. Deram-lhe baralho, tabuleiros, resta-um, quebra-cabeças de mil peças. E tudo o que ela queria era uma folha em branco e uma caneta. Ou um livro de Sherlock Holmes, para fingir que estava naquela Inglaterra vitoriana e nebulosa, em busca do assassino misterioso, ao invés de trancafiada numa sala branca onde o tempo não passava. Nada de cadernos para ela, no entanto. Muito menos canetas. A única vez que recebeu esses materiais foi para escrever uma carta, que depois de redigida, seria censurada pelos seus observadores, e então enviada pelo correio à sua família – que ela nem se lembrava que tinha. Ela não podia manter o material, no entanto. Mas esperteza era seu nome do meio. Eles não notaram o refil da caneta que ela roubou. Transformou o verso daquele painel horrendo em caderno. Ninguém desconfiou. E graças a todos os deuses que ali não havia câmeras. Pelo menos esse mínimo de privacidade lhe foi dada. Não que ela pudesse fazer qualquer coisa ameaçadora ali. Não podia nem se matar – as superfícies eram livres de quinas, não havia um saco plástico, o abajur era feito de um material frágil e fofo. E não que ela tivesse qualquer impulso suicída também. Mas finalmente arrumou seu passa-tempo, naquelas intermináveis horas solitárias, sem saber se era dia ou noite, tendo apenas aquele relógio de parede para indicar que o tempo ainda era uma invariável universal, por mais que não o parecesse. Ela não confiava muito naquele relógio. Ele tinha qualquer coisa de errado. E como ela havia acordado naquele lugar, nunca teve certeza se havia chegado de dia ou à noite. As refeições pareciam ser sempre as mesmas, não havia muita diferença entre café da manhã e almoço. Depois de algum tempo, descobriu um padrão em sua ração: havia dez tipos de comida, o que lhe revelava um ciclo de dez aparentes ‘dias’ toda vez que ela comia a primeira ração. Foi assim que, de alguma forma, começou a contar o tempo. Seu sono era inconstante e, a maioria das vezes, pouco. Entretanto, ela não se sentia cansada. Ela se sentia simplesmente num estado de angústia constante, que apagava qualquer vestígio de sono de si. Quando vinham lhe servir suas três refeições ou examiná-la, ela escondia seu material clandestino dentro do abajur, que tinha um fundo oco. Aprendeu a escrever a menor caligrafia do mundo. Nem ela conseguia ler direito o que escrevia, de tão pequeno que saía. Não sabia se aquele painel ia durar os dois meses dela ali. Parecia que quanto menos coisa ela tinha para fazer, mais ela escrevia. Então, no fim das contas, escrever era tudo o que fazia. No começo, havia rações – ou melhor, dias – em que o desespero falava mais alto do que qualquer coisa, e ela gritava, chorava e se debatia. Chegou mesmo ao ponto de se arranhar, mas ninguém apareceu. Logo, ela se cansou e deitou-se na cama, exausta. Pena que não tinha impulsos suicídas, pensou ela naquele momento, quando fechou os olhos e apagou. Duas refeições depois, eles lhe trariam os papéis e a caneta para escrever a carta. Depois disso, ela não teve mais crises. Escrevendo no verso do painel, seus relatos eram aleatórios. Se fosse contar seu dia-a-dia, era melhor deixá-lo simplesmente em branco, o que refletiria perfeitamente sua rotina. Se fosse escrever um romance, precisaria de idéias, e idéias só lhe vinham com o contato com as pessoas e os livros. Sua cabeça estava vazia. À exceção do desespero, é claro. Mas se fosse escrever sobre o desespero que sentia, era capaz de não agüentar a dor das próprias palavras. E sinceramente, depois de três ou quatro parágrafos ela se tornaria prolixa, pois seu desespero não muda de expressão. Então, a única opção que lhe restou foi escrever todos os contos-de-fadas que sua mãe já havia lhe contado. E felizmente, sua mãe havia lhe contado muitas histórias. E mais felizmente ainda, ela se lembrava de cada um com uma clareza espantosa. E escreveu todos eles. Inclusive com suas próprias observações, de como imaginava cada cena ou personagem, e como às vezes só vinha a entender uma parte da história anos depois, já adulta. Escrevia também como, em certas partes, sua mãe prenderia o fôlego e a deixaria em suspense, esperando que ela dissesse o que havia dentro da caixa misteriosa ou se o homem nas sombras era o vilão ou não.

E ela escreveu. Escreveu e escreveu. Escreveu até o dia em que uma sirene que ela nunca havia ouvido antes tocou, e o barulho de um pandemônio do lado de fora de seu confinamento a assustou.





A peça daquela noite


A cortina de veludo preto estava abaixada, impedindo que o público vislumbrasse o frenético movimento dos atores e contra-regras do outro lado. Um murmúrio suave preenchia os espaços do teatro; todos cogitavam sobre o que seria apresentado aquela noite. Uma peça surpresa podia ser uma boa idéia, mas também podia ser uma péssima idéia. Alguns estavam de braços cruzados, céticos sobre a capacidade artística dos responsáveis pelo espetáculo. Outros, por sua vez, extremamente curiosos, tentavam vislumbrar por entre as brechas da cortina preta algum movimento do outro lado, que revelasse o conteúdo misterioso da peça daquela noite.



De uma forma ou de outra, todos tiveram que esperar até que a luz ambiente diminuísse e o suave som da cortina deslizando fosse ouvida.








Descrevendo a cena


Reclinado em sua cadeira, ele encara o vídeo pausado na TV ao seu lado. Um computador antiquado está à sua frente, um documento do Word em branco, à espera de ser digitado.

A cena na TV mostra três crianças numa sala de estar quase que banal, inidentificável.

O homem, jovem e negro, suspira.

E começa a digitar:


"Descrição da cena:

Três crianças (dois meninos e uma menina), de nomes e idades não identificados, brincam numa sala. Nela se encontram uma mesa, com diversos objetos dispostos sobre ela, e três cadeiras. Ao que parece, não há adulto no ambiente além da pessoa que está filmando.

Síntese:

Trata-se de uma brincadeira de faz-de-conta em que num primeiro momento os três estão cumprindo funções domésticas em 'casa' e num segundo momento vão à 'praia'.

Duração total: 04 minutos e 30 segundos."

Ele pára e observa o próximo item.

"Realce de dois segmentos:"

Suspira e pula-o.

"A análise destacará:

- O diálogo entre as crianças

- Gestos e comandos verbais de um dos garotos, conduzindo os outros dois durante a brincadeira.

Em casa (00:00 – 03:22 min):

(Usaremos nomes fictícios para facilitar a transcrição. A menina será chamada de Maria, o menino de cabelo curto – que conduz a brincadeira – de João e o outro menino de Paulo.)


Os três estão sentados em volta da mesa.


Maria: 'Essa é minha filha', ao mesmo tempo em que estende o braço para pegar uma boneca e acaba derrubando uma garrafa que estava sobre a mesa.

João percebe e diz: 'Eita,derrubou! Xi…' – enquanto segura sua própria boneca.

Maria pega a boneca e repete: 'É minha filha'

João: 'Ta cozinhando o feijão', mexendo numa panelinha de plástico.

Paulo está usando um barbeador, fazendo movimentos no rosto como se estivesse fazendo a barba.

João: 'To penteando o cabelo pra passear' e Paulo troca o barbeador pelo pente, fazendo o que João disse.

Na praia (03:23 – 03:57):

João tinha sugerido que fossem à praia. Então os três se levantaram e seguiram para outra parte da sala, sentando-se no chão. Paulo está passando um tubo de batom vazio na boca.

Maria: 'Peraí, me dá aqui Paulo'

Paulo afasta o batom e diz: 'Não', virando-se para o outro lado. 'Pode não, pode não', ele diz pra Maria.

Pouco tempo depois, Maria diz: 'Eu vou lá em casa', se levantando com a boneca.

João: 'Eu vou lá em casa', acompanhando Maria.

Paulo: 'Vamo', seguindo os outros dois.

Eles seguem de volta para a mesa e João, que ficou um pouco para trás diz: 'Eu to na páia'

Paulo: 'Hã?'

João: 'A páia aqui ó', apontando para a parte vazia da sala."