Últimmas Folhas

9 de julho de 2012

A Maquinaria do Dr. Pratcraft (Preâmbulo)

      O Dr. Pratcraft havia se cansado daqueles velhos discursos. Havia anos que não fazia mais nada além de tentar refutá-los -- em sua mente, é claro. Porque ele sabia que, se ousasse colocar suas idéias em papel, se tornaria uma piada. E, infelizmente, um homem como ele não podia se tornar uma piada. Afinal, ele dependia de sua seriedade para se sustentar -- se a perdesse, perderia também seu pão de cada dia e o livro de cada tarde. E então, como viveria, sem pão e sem livro?
      Não, não -- o Dr. Pratcraft havia, há muito, chegado a conclusão de que o melhor era ficar calado... Calado feito uma bem-comportada porta do mundo real, que finje não sentir os socos e pontapés e cutucões que os outros dão nela. Havia bastado um comentário, uma simples revolta juvenil, ainda no começo de sua carreira, para perceber isso. Àquela época, ainda era inocente quanto aos rumos de sua carreira e ao mundo: ninguém havia lhe dito que não há nada mais cruel que um crente entre descrentes, e esse era exatamente o caso do Dr. Pratcraft. Cercado por homens da ciência, com egos estratosféricos e longos narizes voltados para o radiante sol, era difícil manter a compostura, principalmente quando o assunto era literatura.

 
      Àquela época, do começo de sua carreira (e de sua revolta juvenil), o Dr. Pratcraft ainda não era um doutor. Àquela época, ele era um simples estudante, e talvez por isso seus colegas de profissão tivessem relegado ao esquecimento sua observação que foi motivo de chacota por algum tempo. Sempre arrebatado por literatura e suas fantasias (fossem elas roupas ou lugares), o aspirante-a-doutor sempre fizera questão de defendê-las. Entretanto, nunca antes tivera essa necessidade em seu meio acadêmico. Envolto em cálculos e livros pouco poéticos, a conversa sempre havia sido criteriosa e objetiva, bastante monotônica, e seus colegas pouco mencionavam o chamado "mundo irreal" -- também conhecido, pela maioria das pessoas, como "literatura". Portanto, quando o assunto surgiu, o passado do atual Dr. Pratcraft não sabia que, ali, pisava em campo minado.
      Diante de um comentário de deboche, ele não hesitara em refutar, com certa veemência, tal observação -- o que resultou numa crise de risos de todos os presentes. Desnorteado, o jovem Pratcraft sentiu como se tivesse levado um soco mental. E bastou esse soco para ele perceber a delicadeza da situação.
      O que acontecera então pouco importava, concluíra ele alguns anos depois. Quando ficasse velho e respeitável, poderia defender com mais autoridade seu ponto de vista. Com isso em mente, o doutor empenhou-se em participar de projetos sérios e respeitáveis, conservadores mesmo, e ganhou a admiração de todos aqueles que ele desprezava.
      Esse era o plano.
      Agora, já velho e bem quisto, ele finalmente falaria seu grande projeto, em defesa de tudo aquilo que ele, secretamente, acreditava. Havia chegado a hora de anunciar a sua maquinaria, para a qual ele havia traçado inúmeros planos, feito inúmeros cálculos, mudado e desmudado ângulos... Ele havia tentado desnudar o átomo, a mente, a vontade humana. Havia estudado incansavelmente todas as ciências afins, para que sua maquinaria funcionasse de verdade... Um projeto consistente, um plano sólido -- aquele infeliz grupo de cientistas não poderiam recusar recursos para que ele, finalmente, construísse sua tão desejada obra de arte!