[...]
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E
vós amais o que é fácil!
Eu
amo o Longe e a Miragem,
Amo
os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide!
Tendes estradas,
Tendes
jardins, tendes canteiros,
Tendes
pátrias, tendes tetos,
E
tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu
tenho a minha Loucura!
Levanto-a
como um facho a arder na noite escura, [...]
José Régio, “Cântico Negro”
Aquela cultura de viajantes sempre irritara a todos
que não faziam parte dela. Que ousadia, que ousadia, senhor, vagar por terras,
como se não houvesse fronteiras, ou leis, ou reis, ou presidentes a serem
considerados! Que ousadia infinita era essa, que não seguia as regras dos bons
costumes, as leis dos civilizados, os limites que eram dados?! Um absurdo! Uma
afronta à ordem das coisas! Era quase intolerável, diziam eles... Esse povinho
não passava de um bando de ladrões, só podia ser: era a única explicação que
havia, para preferirem a estrada ao invés de uma casa onde pudessem criar raízes
e envelhecerem tranqüilos, com suas aposentadorias, com seus netos, imóveis e
perpétuos, eternizados em letras e imagens.
Como ousavam eles não seguirem as leis e andarem sem
fronteiras?
O mundo era feito de regras! Regras estritas! Regras
que qualquer ser humano sensato e civilizado devia seguir! Regras! Regras! Regras!
Regras e tratados e pensadores e políticos e
advogados e médicos e professores e filósofos e generais e padres e pastores e
chefes e limites... Como ousavam eles a esfregarem sua liberdade na cara dos
bons cidadãos civilizados cumpridores da lei e da ordem?
Era revoltante.
E por isso, medidas deviam ser tomadas.
Não se podia permitir toda essa liberdade leviana,
não se podia! Leis foram feitas, ordens foram expedidas, limites foram sendo
traçados para esses vagamundos... Eles deviam segui-las, ou estariam fora!...
Apesar de nunca terem estado dentro, e nem jamais terem exibido qualquer sinal
de que queriam entrar, pelo menos para fora de suas fronteiras eles podiam
expulsá-los... Ou assim esperavam. Afinal, era difícil expulsar um povo que não
conhecia esse conceito tão básico.
As tentativas foram inúmeras, ao longo de séculos,
para restringir, civilizar, limitar, ordenar
essa horda de sem-fronteiras. Ações extremas foram tomadas, é verdade, mas
geralmente não eram retrucadas por quase ninguém. Mesmo assim, centenas de anos
depois ainda não se conseguiam impor limites àquele povo de andarilhos.
O desdém dos livres perturbava aqueles de raízes
fundas, que apenas sonhavam com aquele tipo de liberdade, e que só podiam
sonhar, estáticos em suas casas, imóveis em seus quintais, acorrentados a
regras e tratados e pensadores e generais e padres e tudo o mais.
A vida dos sem-fronteiras era invejada por todos. E
por isso mesmo, eles eram os perseguidos... Mas era difícil perseguir alguém
que vivia na estrada e, por isso mesmo, as perseguições eram quase vãs, se não
fossem violentas... E, exatamente por
isso, as perseguições se tornaram violentas. E exatamente por isso, nenhum
dos sem-fronteiras jamais quis abandonar a estrada e trocá-la por aquele mundo
constrito em regras e tristezas – e não que não houvesse tristeza na estrada,
pois havia, e muita, mas era uma tristeza diferente.
A ousadia desses vagamundos era perpétua e
perturbadora.
E as histórias dos mais velhos, apesar de
assustadoras, fascinavam os mais novos. De ladrões, passaram também a poderosos
mágicos misteriosos, guiando seu povo para algum destino desconhecido, algum
lugar sempre mais fantástico do que onde os enraizados se encontravam.
A estrada chama todos os homens: mas apenas alguns
atendem a esse chamado. Os outros observam com amargura e resignação a ousadia
dos livres.