Últimmas Folhas

24 de outubro de 2013

A Carocha & as Vespas no Jantar



Honestamente, não sei por que ela gosta tanto de inventar moda. Pelo amor de todos os diabos, ela é centenária (não me pergunte quantos centenários, mas deve ser mais de um, apesar da cara de Senhora Antipática de Setenta Anos). Ontem mesmo foi a tal da torta de vespas no jantar. Dessa vez, tia Carochinha passou dos limites. Ainda estou sentindo cheiro de queimado no meu cabelo, e não acho que vou conseguir me livrar disso nem tão cedo...

Tia Carochinha havia enxotado os gatos para fora de casa e gritava “venha, Celúsia, venha aqui!" e lá ia eu, sem pestanejar. Como poderia eu imaginar que estava prestes a iniciar uma das mais terríveis batalhas da minha vida (contra vespas, veja bem)?
Segundo ela, era só “matar as vespas que estavam dentro do buraco da parede, fritá-las com óleo de gritaria por quarenta minutos e preparar a massa”; mas pelo menos no meu ponto de vista, isso era descomunalmente difícil. Mas tia Carochinha parecia irredutível quanto ao fato de que sua torta de vespas era perfeitamente simples, então o que eu, uma pobre menina “desperdiçada”, nas palavras de titia, podia fazer? Nada, a não ser concordar com ela e partir para cima do buraco de vespas com luvas de lavar pratos nas mãos.
Obviamente, as vespas revoltaram-se com o meu intrometimento em seu ninho, e resolveram preparar-se para a guerra: enviaram primeiro dois batedores, em seguida vieram os lanceiros (esses foram os que mais doeram), e logo em seguida os arqueiros e suas flechas envenenadas.
Eu e tia Carochinha não perdemos tempo: corremos para debaixo da pia e nos armamos de álcool, plástico e panelas (isso é ideia de tia Carochinha, juro – ela acha que panelas têm algum poder paranormal ou coisa que o valha), e partimos para cima da cavalaria, que agora avançava velozmente pelo ar da cozinha.

Devo admitir que tia Carochinha é irremediavelmente perigosa quando irritada, e eu realmente tive pena das pobres vespas, pois não havia uma que cruzasse o caminho de tia Carochinha que não fosse nocauteada, fosse pelas panelas ou pelo álcool. E, tomando coragem ante ao ato de bravura de minha tia-avó, corri atrás de umas vespas que vinham por trás, e levei três picadas numa mão e uma ameaça de morte.
Pois é, definitivamente eu não tenho a mesma sorte adoidada da minha tia. Quando eu crescer vou acabar me tornando a pupila que mais a decepcionou. Mas eu juro que tento cumprir com todos os absurdos que ela me pede.
Muito bem. Após a Batalha dos Quarenta Minutos, como seria solenemente mencionada a guerra que travamos com as vespas, tia Carochinha pegou um bocadilho de vespas e colocou dentro duma lata. Olhou-me então, como se esperasse que eu fizesse algo. Eu olhei-a de volta, indagando o que deveria fazer, com meu melhor olhar de peixe-morto.
– Pegue logo aquela frigideira, criatura, ou vai querer criar um ninho de vespas no seu ouvido também?!
Não pensei duas vezes, e puxei a frigideira que pendia do teto furado da cozinha.
– E agora, o que faço, tia Carochinha? – indaguei, segurando o objeto de ferro.
– Ora essas, ponha óleo! Ou será que hoje em dia nem mesmo fritar vespas vocês aprendem?
Eu sinceramente não estava nem um pouco inclinada a responder àquela pergunta, de maneira que apenas peguei o óleo de gritaria num canto da cozinha e despejei na frigideira. Assim que o óleo caiu, ele começou a gritar e a borbulhar, e minha tia-avó gritava junto:
– Ponha logo isso no fogo, Celúsia, pelo amor de Holho­-­Tonto! – bradava, enquanto o próprio Holho-Tonto, o gato rajado de tia Carochinha, olhava para nós por uma das janelas da cozinha mocambada.
Ainda bem que o fogo à lenha já estava aceso, pois senão seria impossível calar o Óleo-de-Gritaria, que acabaria por nos deixar surdas (pensando bem, em me deixar surda, pois tia Carochinha escuta tão bem quanto uma porta).
O óleo finalmente calou-se, e tia Carochinha passou-me as vespas.
Olhei com nojo.
– É mesmo necessário? –, e ela deu uma cacetada na minha cabeça com a colher de pau.
Odeio aquela colher de pau.
– Como pretendes fazer uma torta de Vespas sem as vespas?
Não dá pra argumentar com uma lógica dessas, dá?
Mas mesmo assim, eu ainda retrucaria: “mas quem quer fazer a coisa da torta é você e não eu”, mas certamente eu só receberia outra colhadada na cabeça, então deixei como estava.
Joguei as vespas na frigideira, e afastei-me rapidamente, enquanto ouvia tia Carochinha uivar de triunfo. Ela é uma senhora muito à flor da pele: não esconde raiva, nem felicidade, nem nada. Vive tudo intensamente. Intensamente até demais, diga-se de passagem.
– Matamos as vespas! Matamos as vespas! Vamos ter torta de vespas! – Realmente, eu não sabia bem o que ainda fazia ali. Ou melhor, eu não sabia bem onde diabos minha mãe estava com a cabeça ao me enviar como pupila de minha tia-avó caduca.
Tia Carochinha enxotou-me da cozinha, e eu saí sem pestanejar, afinal de contas ver as vespas fritarem não estava na minha lista de passatempos favoritos.
Enquanto minha tia se divertia na cozinha, eu fui tentar diminuir um pouco mais as tralhas que ela guardava nos quatro cantos da casa. Segundo ela, nunca se sabia quando se iria precisar de alguma daquelas coisas. Mas eu sinceramente não entendia quando ela iria precisar do pedaço de gesso que ela havia usado no braço ano passado, por exemplo. A casa era grande, um único piso além do forro do teto onde tia Carochinha sempre arrumava de enfiar velharias. É o maior trabalho do mundo arrumar aquela casa – talvez por isso ela nunca limpasse tudo. Digo, talvez por isso ela nunca mandasse eu limpar tudo.
Meu deus, isso é quase trabalho escravo.
Cheguei-me na sala. Uma zona. A um canto, havia umas três ou quatro antenas parabólicas. Não que elas tivessem pertencido à tia Carochinha – ela nem sequer sabia para quê serviam, mas achou-as “bonitinhas” e trouxe para casa.
Lembro que dois dias depois alguns vizinhos juntaram-se e fizeram um B.O. reportando o roubo de antenas parabólicas de suas casas. Ainda bem que tia Carochinha não é muito conhecida. Mas mal havia eu começado a jogar pedregulhos na lata de lixo quando tia Carochinha gritou por mim (mais uma vez):
– CELÚSIA DO CÉU! Corre aqui! CORRE!
Corri pelo corredor feito uma estabanada, e quando finalmente cheguei na cozinha, vi que o forno estava começando a inchar.
– O que aconteceu, tia Carochinha?! – gritei, horrorizada, vendo que a coisa estava prestes a explodir.
– Acho que coloquei fermento demais! – respondeu ela pegando-me pela gola da blusa e arrastando-me para fora de casa, sob exclamações irritadas de “estou ficando velha! Estou realmente ficando velha!”.
Mal chegamos ao quintal-floresta quando ouvimos um grande BUM! vindo da cozinha, ao passo que o teto tremia e mais telhas caíam. Os dez gatos de tia Carochinha eriçaram os pêlos ante a perturbação das causas naturais do dia-a-dia, e um dos anuns gralhou loucamente, levantando vôo, indo provavelmente procurar seus outros dois irmãos.
Olhei-a, aparvalhada, e não me surpreendi ao ver que ela ainda estava decidida a ter sua torta de vespas para o jantar.
– Ou é hoje, ou é nunca! – exclamou ela, marchando de volta para a cozinha – ou o que restou dela. Já perdi as contas de quantas vezes aquela cozinha foi pelos ares.
– Eu prefiro a segunda opção – murmurei, a fim de que ela não ouvisse.
Logo estávamos novamente na cozinha, que por sinal, nunca vi pior. Nem mesmo quando tia Carochinha enfiara um triturador de carne gigante lá.
Era massa estragada pra todo lado, e ainda acho que umas coisinhas pretas que estavam enfiadas na parede, como dardos, eram as vespas que eu havia colocado na frigideira. Todo aquele trabalho pra nada! Gostaria de saber que diabo de fermento tia Carochinha havia colocado naquela massa, pois o caos que ela causara fora impressionante.
Enquanto eu me matava pra limpar todo aquele grude absurdo, tia Carochinha voltava a preparar a torta. Pelo menos ela não havia me pedido para cozinhar de novo. Mesmo assim, sabia que coisa boa não podia sair dali, e sabia que fosse o que fosse, ia sobrar pra mim.
Gemi alto. Alto até demais.
– Cale-se, Celúsia! – retrucou tia Carochinha, concentrada na nova leva de vespas que fritava. – Dessa vez sai! Ah, se sai!
Eu simplesmente odeio quando ela fala nesse tom, mas naquele momento, eu estava muito ocupada tirando meleca de massa do meu cabelo para retrucar mais uma vez.

***
Não sei com que magia, mas às sete horas da noite, a bendita torta de vespas estava pronta. A cozinha ainda tinha uma leve camada de massa de torta, mas nada que nós não pudéssemos resolver no dia seguinte. Tia Carochinha havia convidado meus pais e irmãs para o jantar, e eu enfrentava uma das maiores crises existenciais da minha vida. Ao mesmo tempo em que não podia conceber a ideia de comer vespas no jantar, ou em qualquer outra refeição, não tinha coragem de estragar o entusiasmo de tia Carochinha e avisar minha família para não vir.
Mas eles, coitados, não podiam nem desconfiar do prato que seria servido aquela noite. Minhas irmãs teriam uma síncope se descobrissem.
Ao chegarem, elas até elogiaram o cheiro bom da torta.
Pobres coitadas.
– Servidos? – indagou tia Carochinha.
Não, obrigada.
Minha irmã mais nova, Celeste, logo avançou no primeiro pedaço de torta, enquanto eu relutava em aceitar minha fatia.
Mas foi inevitável: logo, todos estavam servidos, até eu, que enganava, jogando pedacinhos de torta debaixo da mesa (que tia Carochinha nem desconfie disso se eu quiser continuar tendo todas as partes do corpo).
Quando finalmente todos pegaram seus garfos para darem a primeira garfada, uma coisa incrível aconteceu: a torta começou a zumbir histericamente, um zumbido enorme e apavorante. Mais parecia como se o óleo de gritaria estivesse preso num quarto acusticamente isolado. Minhas irmãs começaram a gritar e minha mãe arregalou os olhos para o prato. Meu pai pegou a faca, a fim de matar o primeiro doido que pulasse da torta. E eu, pobre de mim, olhava de maneira culpada para o nosso jantar.
Não deu outra.
De repente, a torta explodiu-se sem mais delongas, com um sinfônico TADUM!, seguido da gritaria das minhas irmãs. A situação não poderia ser mais desconcertante do que era: a sala completamente suja de manchas escuras e torradas, Celeste abrindo um berreiro enquanto Cecília encarava, estupefata, seu prato explodido. Minha mãe começou a gritar histericamente para a torta (ou o que havia restado dela em cima da mesa). Meu pai estava atordoado, com a cara completamente melada, a faca ainda em punho, como se corrêssemos o risco de sermos atacados a qualquer segundo.
      – Eu não acredito! – berrou tia Carochinha, irada. – De novo?! De novo?! Todas as vezes que eu faço essa torta ela explode antes da primeira garfada!
Minha mãe levantou, desculpando-se, agarrando minhas irmãs e saindo de fininho. Deu um leve tapa no ombro do meu pai para ele sair de seu estado catatônico. Ele olhou para mim, confuso, e eu olhei para tia Carochinha, chocada.
– Como é, tia Carochinha? – indaguei, incrédula. – Isso sempre acontece?!
– É, sempre, sempre, sempre! – berrou ela, indignada. –Pensei que dessa vez fosse dar certo!
– Tia, estamos indo... Sinto muito... hã, por qualquer coisa. – disse minha mãe, mas ela já estava acostumada com a velha Carocha, sabia que ela não responderia. Então, de fininho, minha família saiu e me deixou ali com a fera.
– E por quê diabos você achou isso, tia Carochinha?! – eu devia estar vermelha de raiva. Eu simplesmente não entendia por quê cargas d'água ela repetiu uma experiência que sabia que não dava certo.
– Eu botei mais vespas dessa vez! – respondeu ela simplesmente, levantando-se.
Olhei-a, incrédula.
Quer dizer que eu passei por tudo aquilo pra nada?! E o pior: ela sabia que ia dar em nada, mas mesmo assim me fez ficar com marcas enormes de picada de vespa pra fazer uma torta que não dava certo de jeito nenhum! E eu entendi (ou melhor, lembrei) porque ela repetiu uma experiência que ela sabia que não dava certo: ela era tia Carochinha.
Então, como se lesse meus pensamentos, tia Carochinha cruzou os braços e olhou-me com cara feia (o que é assustador, vale ressaltar).
– Não é repetir uma experiência que não dá certo nunca, minha filha. É repetir uma experiência de um jeito diferente, pra ver se dá certo. Mas acho que não foi dessa vez... – ela deu um suspiro, pensativa. – Da próxima, vou tentar com menos óleo.
Deixei minha cabeça cair pesadamente na mesa, derrotada. Juro que da próxima vez vou confiscar o livro de receitas dela e rasgar todas as páginas que contenham bolos e tortas que pareçam ameaçadores. Daqui em diante, só cozinho quando o Ministério da Saúde disser que é seguro!

E agora, cá estou eu, com trabalho em dobro, pra limpar os restos da cozinha, consertar o teto (pela terceira vez esse mês, diga-se de passagem), praticamente trocar de sala (pois só trocando a sala pra ela voltar a ser habitável), e isso tudo ainda tendo que cuidar dos dez gatos de tia Carochinha! Sinceramente, não sei o que ainda estou fazendo por aqui...
E então, antes que eu possa fechar meu caderno e me concentrar na longa e árdua tarefa de limpeza, tia Carochinha me aparece com um enorme sorriso no rosto.
– Celúsia, querida, hoje eu resolvi fazer uma coisa mais simples para o jantar. – E eu viro-me para tia Carochinha. Mais simples? Só pode ser brincadeira! – Hoje teremos ensapado!
– “Ensapado”, tia? Não seria ensopado?
– Não, não. Ensapado: ensopado de sapo!
Oh, deuses da culinária... Protegei-me!