Honestamente, não sei por que ela gosta tanto de
inventar moda. Pelo amor de todos os diabos, ela é centenária (não me pergunte quantos centenários, mas deve ser mais
de um, apesar da cara de Senhora Antipática de Setenta Anos). Ontem mesmo foi a
tal da torta de vespas no jantar. Dessa vez, tia Carochinha passou dos limites.
Ainda estou sentindo cheiro de queimado no meu cabelo, e não acho que vou
conseguir me livrar disso nem tão cedo...
Tia Carochinha havia enxotado os gatos para fora de
casa e gritava “venha, Celúsia, venha aqui!" e lá ia eu, sem pestanejar.
Como poderia eu imaginar que estava prestes a iniciar uma das mais terríveis
batalhas da minha vida (contra vespas,
veja bem)?
Segundo ela, era só “matar as vespas que estavam
dentro do buraco da parede, fritá-las com óleo de gritaria por quarenta minutos
e preparar a massa”; mas pelo menos no meu ponto de vista, isso era
descomunalmente difícil. Mas tia Carochinha parecia irredutível quanto ao fato
de que sua torta de vespas era perfeitamente simples, então o que eu, uma pobre
menina “desperdiçada”, nas palavras de titia, podia fazer? Nada, a não ser
concordar com ela e partir para cima do buraco de vespas com luvas de lavar
pratos nas mãos.
Obviamente, as vespas revoltaram-se com o meu
intrometimento em seu ninho, e resolveram preparar-se para a guerra: enviaram
primeiro dois batedores, em seguida vieram os lanceiros (esses foram os que
mais doeram), e logo em seguida os arqueiros e suas flechas envenenadas.
Eu e tia Carochinha não perdemos tempo: corremos para
debaixo da pia e nos armamos de álcool, plástico e panelas (isso é ideia de tia
Carochinha, juro – ela acha que panelas têm algum poder paranormal ou coisa que
o valha), e partimos para cima da cavalaria, que agora avançava velozmente pelo
ar da cozinha.
Devo admitir que tia Carochinha é irremediavelmente
perigosa quando irritada, e eu realmente tive pena das pobres vespas, pois não
havia uma que cruzasse o caminho de tia Carochinha que não fosse nocauteada,
fosse pelas panelas ou pelo álcool. E, tomando coragem ante ao ato de bravura
de minha tia-avó, corri atrás de umas vespas que vinham por trás, e levei três
picadas numa mão e uma ameaça de morte.
Pois é, definitivamente eu não tenho a mesma sorte
adoidada da minha tia. Quando eu crescer vou acabar me tornando a pupila que
mais a decepcionou. Mas eu juro que tento cumprir com todos os absurdos que ela
me pede.
Muito bem. Após a Batalha dos Quarenta Minutos, como
seria solenemente mencionada a guerra que travamos com as vespas, tia
Carochinha pegou um bocadilho de vespas e colocou dentro duma lata. Olhou-me
então, como se esperasse que eu fizesse algo. Eu olhei-a de volta, indagando o
que deveria fazer, com meu melhor olhar de peixe-morto.
– Pegue logo aquela frigideira, criatura, ou vai
querer criar um ninho de vespas no seu ouvido também?!
Não pensei duas vezes, e puxei a frigideira que pendia
do teto furado da cozinha.
– E agora, o que faço, tia Carochinha? – indaguei,
segurando o objeto de ferro.
– Ora essas, ponha óleo! Ou será que hoje em dia nem
mesmo fritar vespas vocês aprendem?
Eu sinceramente não estava nem um pouco inclinada a
responder àquela pergunta, de maneira que apenas peguei o óleo de gritaria num
canto da cozinha e despejei na frigideira. Assim que o óleo caiu, ele começou a
gritar e a borbulhar, e minha tia-avó gritava junto:
– Ponha logo isso no fogo, Celúsia, pelo amor de Holho-Tonto!
– bradava, enquanto o próprio Holho-Tonto, o gato rajado de tia Carochinha,
olhava para nós por uma das janelas da cozinha mocambada.
Ainda bem que o fogo à lenha já estava aceso, pois
senão seria impossível calar o Óleo-de-Gritaria, que acabaria por nos deixar
surdas (pensando bem, em me deixar surda, pois tia Carochinha escuta tão
bem quanto uma porta).
O óleo finalmente calou-se, e tia Carochinha passou-me
as vespas.
Olhei com nojo.
– É mesmo necessário? –, e ela deu uma cacetada na
minha cabeça com a colher de pau.
Odeio aquela colher de pau.
– Como pretendes fazer uma torta de Vespas sem as
vespas?
Não dá pra argumentar com uma lógica dessas, dá?
Mas mesmo assim, eu ainda retrucaria: “mas quem quer
fazer a coisa da torta é você e não eu”, mas certamente eu só receberia outra colhadada na cabeça, então
deixei como estava.
Joguei as vespas na frigideira, e afastei-me
rapidamente, enquanto ouvia tia Carochinha uivar de triunfo. Ela é uma senhora
muito à flor da pele: não esconde raiva, nem felicidade, nem nada. Vive tudo
intensamente. Intensamente até demais, diga-se de passagem.
– Matamos as vespas! Matamos as vespas! Vamos ter torta de vespas! – Realmente,
eu não sabia bem o que ainda fazia ali. Ou melhor, eu não sabia bem onde diabos
minha mãe estava com a cabeça ao me enviar como pupila de minha tia-avó caduca.
Tia Carochinha enxotou-me da cozinha, e eu saí sem
pestanejar, afinal de contas ver as vespas fritarem não estava na minha lista
de passatempos favoritos.
Enquanto minha tia se divertia na cozinha, eu fui
tentar diminuir um pouco mais as tralhas que ela guardava nos quatro cantos da
casa. Segundo ela, nunca se sabia quando se iria precisar de alguma daquelas
coisas. Mas eu sinceramente não entendia quando ela iria precisar do pedaço de
gesso que ela havia usado no braço ano passado, por exemplo. A casa era grande,
um único piso além do forro do teto onde tia Carochinha sempre arrumava de
enfiar velharias. É o maior trabalho do mundo arrumar aquela casa – talvez por
isso ela nunca limpasse tudo. Digo, talvez por isso ela nunca mandasse eu limpar tudo.
Meu deus, isso é quase trabalho escravo.
Cheguei-me na sala. Uma zona. A um canto, havia umas
três ou quatro antenas parabólicas. Não que elas tivessem pertencido à tia
Carochinha – ela nem sequer sabia para quê serviam, mas achou-as “bonitinhas” e
trouxe para casa.
Lembro que dois dias depois alguns vizinhos
juntaram-se e fizeram um B.O. reportando o roubo de antenas parabólicas de suas
casas. Ainda bem que tia Carochinha não é muito conhecida. Mas mal havia eu
começado a jogar pedregulhos na lata de lixo quando tia Carochinha gritou por
mim (mais uma vez):
– CELÚSIA DO CÉU! Corre aqui! CORRE!
Corri pelo corredor feito
uma estabanada, e quando finalmente cheguei na cozinha, vi que o forno estava
começando a inchar.
– O que aconteceu, tia
Carochinha?! – gritei, horrorizada, vendo que a coisa estava prestes a
explodir.
– Acho que coloquei fermento demais! – respondeu ela
pegando-me pela gola da blusa e arrastando-me para fora de casa, sob
exclamações irritadas de “estou ficando velha! Estou realmente ficando velha!”.
Mal chegamos ao quintal-floresta quando ouvimos um
grande BUM! vindo da cozinha, ao passo que o teto tremia e mais telhas
caíam. Os dez gatos de tia Carochinha eriçaram os pêlos ante a perturbação das
causas naturais do dia-a-dia, e um dos anuns gralhou loucamente, levantando
vôo, indo provavelmente procurar seus outros dois irmãos.
Olhei-a, aparvalhada, e não me surpreendi ao ver que
ela ainda estava decidida a ter sua torta de vespas para o jantar.
– Ou é hoje, ou é nunca! – exclamou ela, marchando de
volta para a cozinha – ou o que restou dela. Já perdi as contas de quantas
vezes aquela cozinha foi pelos ares.
– Eu prefiro a segunda opção – murmurei, a fim de que
ela não ouvisse.
Logo estávamos novamente na cozinha, que por sinal,
nunca vi pior. Nem mesmo quando tia Carochinha enfiara um triturador de carne
gigante lá.
Era massa estragada pra todo lado, e ainda acho que
umas coisinhas pretas que estavam enfiadas na parede, como dardos, eram as
vespas que eu havia colocado na frigideira. Todo aquele trabalho pra nada!
Gostaria de saber que diabo de fermento tia Carochinha havia colocado naquela
massa, pois o caos que ela causara fora impressionante.
Enquanto eu me matava pra limpar todo aquele grude
absurdo, tia Carochinha voltava a preparar a torta. Pelo menos ela não havia me
pedido para cozinhar de novo. Mesmo assim, sabia que coisa boa não podia sair
dali, e sabia que fosse o que fosse, ia sobrar pra mim.
Gemi alto. Alto até demais.
– Cale-se, Celúsia! – retrucou tia Carochinha,
concentrada na nova leva de vespas que fritava. – Dessa vez sai! Ah, se sai!
Eu simplesmente odeio quando ela fala nesse
tom, mas naquele momento, eu estava muito ocupada tirando meleca de massa do
meu cabelo para retrucar mais uma vez.
***
Não sei com que magia, mas às sete horas da noite, a
bendita torta de vespas estava pronta. A cozinha ainda tinha uma leve camada de
massa de torta, mas nada que nós não pudéssemos resolver no dia seguinte. Tia
Carochinha havia convidado meus pais e irmãs para o jantar, e eu enfrentava uma
das maiores crises existenciais da minha vida. Ao mesmo tempo em que não podia
conceber a ideia de comer vespas no jantar, ou em qualquer outra
refeição, não tinha coragem de estragar o entusiasmo de tia Carochinha e avisar
minha família para não vir.
Mas eles, coitados, não podiam nem desconfiar do prato
que seria servido aquela noite. Minhas irmãs teriam uma síncope se
descobrissem.
Ao chegarem, elas até elogiaram o cheiro bom da torta.
Pobres coitadas.
– Servidos? – indagou tia Carochinha.
Não, obrigada.
Minha irmã mais nova, Celeste, logo avançou no
primeiro pedaço de torta, enquanto eu relutava em aceitar minha fatia.
Mas foi inevitável: logo, todos estavam servidos, até
eu, que enganava, jogando pedacinhos de torta debaixo da mesa (que tia Carochinha
nem desconfie disso se eu quiser continuar tendo todas as partes do corpo).
Quando finalmente todos pegaram seus garfos para darem
a primeira garfada, uma coisa incrível aconteceu: a torta começou a zumbir
histericamente, um zumbido enorme e apavorante. Mais parecia como se o óleo de
gritaria estivesse preso num quarto acusticamente isolado. Minhas irmãs começaram a gritar e minha mãe
arregalou os olhos para o prato. Meu pai pegou a faca, a fim de matar o
primeiro doido que pulasse da torta. E eu, pobre de mim, olhava de maneira
culpada para o nosso jantar.
Não deu outra.
De repente, a torta explodiu-se sem mais delongas, com
um sinfônico TADUM!, seguido da
gritaria das minhas irmãs. A situação não poderia ser mais desconcertante do
que era: a sala completamente suja de manchas
escuras e torradas, Celeste abrindo um berreiro enquanto Cecília
encarava, estupefata, seu prato explodido. Minha mãe começou a gritar histericamente
para a torta (ou o que havia restado dela em cima da mesa). Meu
pai estava atordoado, com a cara completamente melada, a faca ainda em punho,
como se corrêssemos o risco de sermos atacados a qualquer segundo.
– Eu não
acredito! – berrou tia Carochinha, irada. – De novo?! De novo?! Todas as
vezes que eu faço essa torta ela explode antes da primeira garfada!
Minha mãe levantou, desculpando-se, agarrando minhas
irmãs e saindo de fininho. Deu um leve tapa no ombro do meu pai para ele sair
de seu estado catatônico. Ele olhou para mim, confuso, e eu olhei para tia
Carochinha, chocada.
– Como é, tia Carochinha? – indaguei, incrédula. – Isso
sempre acontece?!
– É, sempre, sempre, sempre! – berrou ela, indignada. –Pensei
que dessa vez fosse dar certo!
– Tia, estamos indo... Sinto muito... hã, por qualquer
coisa. – disse minha mãe, mas ela já estava acostumada com a velha Carocha,
sabia que ela não responderia. Então, de fininho, minha família saiu e me
deixou ali com a fera.
– E por quê diabos você achou isso, tia Carochinha?! –
eu devia estar vermelha de raiva. Eu simplesmente não entendia por quê cargas
d'água ela repetiu uma experiência que sabia que não dava certo.
– Eu botei mais vespas dessa vez! – respondeu ela
simplesmente, levantando-se.
Olhei-a, incrédula.
Quer dizer que eu passei por tudo aquilo pra nada?! E
o pior: ela sabia que ia dar em nada, mas mesmo assim me fez ficar com
marcas enormes de picada de vespa pra fazer uma torta que não dava certo de
jeito nenhum! E eu entendi (ou melhor, lembrei) porque ela repetiu uma
experiência que ela sabia que não
dava certo: ela era tia Carochinha.
Então, como se lesse meus
pensamentos, tia Carochinha cruzou os braços e olhou-me com cara feia (o que é
assustador, vale ressaltar).
– Não é repetir
uma experiência que não dá certo nunca, minha filha. É repetir uma
experiência de um jeito diferente,
pra ver se dá certo. Mas acho que não foi dessa vez... – ela deu um suspiro,
pensativa. – Da próxima, vou tentar com menos óleo.
Deixei minha cabeça cair pesadamente na mesa,
derrotada. Juro que da próxima vez vou confiscar o livro de receitas dela e rasgar
todas as páginas que contenham bolos e tortas que pareçam ameaçadores. Daqui em
diante, só cozinho quando o Ministério da Saúde disser que é seguro!
E agora, cá estou eu, com trabalho em dobro, pra
limpar os restos da cozinha, consertar o teto (pela terceira vez esse mês, diga-se
de passagem), praticamente trocar de sala (pois só trocando a sala pra
ela voltar a ser habitável), e isso tudo ainda tendo que cuidar dos dez gatos
de tia Carochinha! Sinceramente, não sei o que ainda estou fazendo por aqui...
E então, antes que eu possa fechar meu caderno e me
concentrar na longa e árdua tarefa de limpeza, tia Carochinha me aparece com um
enorme sorriso no rosto.
– Celúsia, querida, hoje eu resolvi fazer uma coisa
mais simples para o jantar. – E eu viro-me para tia Carochinha. Mais simples?
Só pode ser brincadeira! – Hoje teremos ensapado!
– “Ensapado”,
tia? Não seria ensopado?
– Não, não. Ensapado: ensopado de sapo!
Oh, deuses da culinária... Protegei-me!