Ela estava
trancafiada no escuro há muito tempo.
Não sabia quanto,
mas sabia que era tempo suficiente para sua garganta adquirir a textura de
areia. Ela conseguia sentir seu corpo consumindo-se lentamente... As dores no
tórax eram insuportáveis, e se ela ainda estivesse hidratada, choraria.
Mas nem isso
podia fazer.
Tudo o que podia
fazer era grunhir, rastejar no chão empapado com seus próprios dejetos,
dobrar-se ao meio, sentir seus órgãos esmorecendo-se, desejar a morte... Mas,
apesar disso, a fome era mais suportável que a sede.
Meu deus, a
sede...
A sede a
consumia.
A sede a fazia
beber seu próprio mijo... Até o momento em que ela mal conseguia capturar o
líquido que saía por entre suas pernas nas mãos. Mãos trêmulas, vacilantes,
macilentas, cinzas... As mãos de um cadáver. Se Elisa pudesse vê-las, não teria
dúvidas: estava morta.
A sede estava
deixando-a louca.
As dores eram
fortes, e a escuridão apenas lhe dava a terrível sensação de que haviam
esquecido-a ali.
Por quanto tempo?
Três dias? Uma semana? Duas?
Por quanto tempo mais?
Por quanto tempo
mais ela agüentaria?
Por deus,
aquela sede iria matá-la antes da fome, ou da loucura, ou da dor... Iria
matá-la.
Ela estava
enlouquecendo e, em meio à loucura, aos devaneios sem sentido, às balbúcias, às
conversas com a escuridão, aos ataques contra si mesma... Em meio à tudo isso,
Elisa pensava em como havia chegado ali. Ela pensava e pensava e pensava, pois
se deixasse a sede e a fome consumi-la, já teria enlouquecido – não que ela
estivesse muito longe disso.
Mas conseguia
manter algum prumo. Conseguia manter momentos de lucidez. Tinha que
manter alguns momentos de lucidez.
E esses momentos,
naquele lugar sujo, escuro e esquecido, eram tudo o que Elisa tinha. Há muito
já havia parado de gritar – não por ter desistido, mas simplesmente porque seu
corpo não tinha mais forças para tanto. Ela até duvidava que ainda houvesse ar
em seus pulmões... Aquele fedor a sufocava, não havia para onde fugir.
Pensar e
relembrar o que a trouxera ali era tudo o que podia fazer.
Em meio à
imundície, à sede, à fome e ao esquecimento, Elisa lembrava dos fragmentos de
sua história.
***
— CUIDADO! — ela
gritou, nervosa, pulando de seu esconderijo atrás de uma árvore frondosa.
O rapaz sentado
tranquilamente no campo, observando o pôr-do-sol, não devia ter mais que quinze
anos e, quando viu tão estranha figura surgir do nada e gritar-lhe palavras de
ordem, agiu instintivamente: levantou-se de forma abrupta e
Sentiu uma dor
insuportável no ombro esquerdo.
Ajoelhou-se
atordoado. Mais gritos da estranha. Levou a mão para o local da dor. Algo
escorregadio e escamoso fincado em seu ombro.
Uma cobra.
Se ele pudesse
vê-la com clareza, teria dito que era a maior cobra que já vira, com as presas
cravadas nele, destilando seu veneno na corrente sanguínea, o coração
acelerado, bombeando sangue loucamente; perigo!, perigo!...
Como um boneco
sem sustentação, ele caiu pesadamente no chão, lançando um último olhar vítreo
para Elisa.
Com habilidade e
rapidez, ela conseguiu fazer com que o réptil largasse sua presa, e antes que
pudesse pensar em guardá-la na cesta de corda, a serpente já havia desaparecido
por entre o matagal.
Elisa foi rápida:
rasgou a blusa de algodão cru do menino e puxando um canivete do bolso da calça
jeans, cortou a pele dele no local da mordida. Sem hesitar, abaixou-se e
começou a sugar o local da ferida, cuspindo o sangue envenenado, para depois
voltar a sugar novamente.
O que ela não
esperava era que, em meio ao seu ato de bravura, o pai e os irmãos do jovem
rapaz aparecessem e testemunhassem, horrorizados, o caçula ser atacado por uma
estranha mulher em vestes mais estranhas ainda.
Quando Elisa levou
o primeiro chute no estômago e ouviu os gritos numa língua desconhecida, ela só
conseguiu compreender uma palavra: “vampire!”.
***
— Uma mágica
real, minha querida! Real! — exclamou ele em seu sotaque estranho,
enquanto guiava Elisa para dentro de seu camarim.
Ela seguiu-o,
intrigada, ainda com o cesto de corda no qual guardava sua parceira de palco –
Naia, a cobra naja. Elas mal haviam terminado de ensaiar seu número para a
noite seguinte quando o novo mágico do circo, um certo Senhor Karl
Schlüsselring, a chamou para auxiliá-lo em seu próprio número.
— Parece ser
fantástico, Sr. Karl, mas eu não sou assistente de palco — retrucou Elisa, o
mais educadamente possível.
— Oh, não! Não!
Não! — ele negou com a cabeça veementemente. — Não é para ser minha assistente
de palco, Elisa, é só para observar minha mágica, e dizer se é boa ou não. É
algo em que estive trabalhando por anos... E seria interessante ter uma
encantadora de serpentes para ver. Afinal, se você pode encantar serpentes,
você pode reconhecer uma fraude quando vê uma...
Enquanto ele
falava, andava de um lado para o outro em seu camarim, procurando os objetos
que serviriam em sua dita “mágica real”. Com cautela, Elisa sentou-se num banco
e colocou o cesto de Naia no colo, que pesava bastante.
— Uma mágica
real, é, Karl? — ela ponderou aquilo com uma pontada de ironia na voz. —
Quantas vezes já ouvi isso...
— Muitas vezes,
eu suponho — respondeu ele, sem olhá-la. — Mas duvido que já tenha visto o que
vou lhe mostrar...
***
Enquanto ela se
debatia e gritava para soltarem-na, eles batiam-na e gritavam para ela calar a
boca, mas num idioma que ela nunca ouvira antes.
Elisa tentou de
tudo que sabia: português, espanhol, inglês, seu alemão de uma infância quase
esquecida. Eles não eram capazes de compreendê-la... E isso a apavorava mais do
que qualquer soco que podia levar. Toda a sua linguagem corporal mostrava
claramente que ela não iria fazer mal, que ela nem sequer revidaria os chutes e
as pauladas, mas estavam indiferentes a isso, enquanto o corpo desacordado do
menino de quinze anos continuava caído a um lado.
De repente, eles
pararam.
Naquele momento,
Elisa desejou com todas as suas forças nunca ter atravessado aquele portal de
luz que tão sedutoramente o mágico grisalho havia mostrado.
Mais tarde, porém,
a encantadora de serpentes iria aprender que havia coisas bem piores do que
levar uma surra de três homens.
***
Tudo o que ela
queria saber resumia-se a duas palavras: por quê?
Por que o mágico
Karl abriu o portal para ela? Por que a persuadiu a atravessar? E por que ela
foi tão estúpida a ponto de fazê-lo? Ele havia encantado-a, da mesma forma que
ela encantava a serpente... Mas no fundo, sabia que acreditara que tudo não
passava de um truque – e ao relembrar isso, percebeu que Karl Schlüsselring havia
induzido-a a não acreditar...
Revirando-se em
sua própria merda, Elisa tentou gritar novamente, mas o que saiu da sua boca
foi um som gutural e animalesco, lembrando-a de onde estava, e de como
estava. A garganta seca lhe doía, era como se tivesse engolido areia por três
dias seguidos...
Meu deus, ela só
queria conseguir chorar...
Se ao menos ela
tivesse algo para beber... Qualquer coisa...
Água... Tanta sede,
tanta sede...
***
Era uma espécie
de tribunal.
Havia homens
ricamente vestidos, sentados em cadeiras de espaldar alto, segurando cetros e
falando com voz autoritária. Através de olhos lacrimejantes e inchados de tanto
apanhar, ela tentava observar os detalhes do enorme salão, mas não conseguia.
Elisa havia sido
carregada até aquela “corte” por dois homens, enquanto o terceiro (o pai, pelo
que ela percebera) levava a “vítima” da vampira. O menino estava debilmente
acordado agora, mas isso era suficiente para aliviar o coração de Elisa. Ela
havia conseguido salvá-lo... ou assim esperava.
Enquanto ouvia os
outros discutirem sobre seu destino numa língua que não entendia, ela captou um
sussurro num dialeto conhecido: parecia alemão, mas num sotaque diferente.
Levantou a cabeça, uma fagulha de esperança brilhando em seus olhos. Balbuciou,
então, numa língua quase esquecida para si:
— Bitte...
Ich bin keine Vampir[1]...
— ela sussurrou para o homem no canto direito do tribunal, que conversava com
um ajudante em alemão. Assim que Elisa falou, ele levantou os olhos para ela,
estupefato, esquecendo-se de sua conversa com o jovem pajem. Ele voltou-se para
os outros membros daquela estranha corte e falou-lhes naquele idioma que ela
não entendia.
Houve indignação,
isso Elisa conseguia entender.
Depois, eles
apontaram furiosamente para ela.
E a próxima coisa
que estavam fazendo era arrastá-la para aquela cela sem janelas, cuja porta não
seria mais aberta por um longo tempo.
***
Na sua primeira
noite ali, Elisa recebera uma visita.
Através da
espessa porta de ferro, ela reconheceu a voz daquele único homem que falava uma
mesma língua que ela.
Na escuridão, ele
havia aproveitado para interrogá-la.
O que fazia ali?
Havia se tornado uma vampira na época de ouro, por isso conhecia o dialeto
antigo? Por que o menino camponês?... E o mais importante: por que havia
deixado capturar-se?
E ela retrucava,
com toda veemência de quem é inocente: não pertencia àquele lugar, havia sido
enganada por um mágico, se chamava Elisa, e tentara salvar o menino do veneno
da cobra, sugando o lugar da mordida... e alemão era uma língua falada como
qualquer outra de onde viera; não sabia nada de época de ouro. Não tinha forças
para lutar contra três homens, não era nada especial não era uma vampira
imortal não bebia sangue por favor me deixe ir embora...
E para sua total
surpresa e desespero, tudo o que o seu interlocutor respondeu, depois de um
longo silêncio, foi: você é o primeiro vampiro que capturamos; estávamos
começando a achar que não passavam de um mito.
Dito isso, Elisa
ouviu seus passos se afastando. E ela gritou por ele, indignada. E gritou, e
gritou, e gritou... E continuou gritando, até que percebeu que não havia
ninguém – nem sequer um mero guarda – para ouvi-la.
***
Fazia quanto
tempo? Quanto tempo?
Ela não
agüentaria mais. Não tinha nem mais forças para arrastar-se. Ela precisava de
água. Ela desesperava por água... A sede iria matá-la antes de qualquer
coisa...
A sede...
Num lugar de
silêncios, onde o único som é o que ela própria emitia, qualquer rangido, por
mais suave que fosse, era perceptível. Então quando uma porta mais longínqua
foi aberta, ela ouviu.
Depois, passos.
Elisa estava
salva. Num vôo de sua imaginação, viu: o mágico Karl havia seguido-a, havia
encontrado-a naquele mundo estranho de vampiros, camponeses, cortes e
calabouços. Vinha resgatá-la... e lhe traria água.
Juntando o resto
das forças que tinha, Elisa arrastou-se para a porta de ferro, sua tão bem
conhecida amiga.
Ouviu o tilintar
de chaves.
A porta
entreabriu-se... e a parca luz de uma tocha quase a cegou. Ela encolheu-se com
a luminosidade, por isso não viu quando o guarda abaixou-se e depositou à
frente dela duas tigelas cheias até a boca.
Disse uma única
palavra, que parecia ter sido treinada: — Trink.
E foi embora.
Elisa não
precisava de uma ordem.
Debilmente, pegou
uma das tigelas e levou aos lábios secos, bebendo seu conteúdo avidamente... O
líquido escorreu pelos cantos de sua boca, que mal conseguia manter-se firme...
Mas a sede...
A sede iria
embora... Ela choraria, então.
E em algum lugar
no fundo da sua mente, ela registrava que o que estava bebendo não parecia nem
um pouco com água. Enquanto lambia até a última gota do conteúdo da tigela,
Elisa percebeu que o que havia acabado de beber tão avidamente não era nada
além de sangue diluído no que parecia ser água.
E Elisa
vomitaria, se não tivesse se arrastado para beber a outra tigela de sangue
humano, uma felicidade tresloucada tomando conta de si...
A sede iria
embora.
E com ela, o
resto de sua sanidade.
***
Quando, mais
tarde, abriram a porta de sua prisão e arrastaram-na para um pátio coberto,
onde despiram-na com brutalidade e jogaram baldes de água gelada nela, para
tirar o fedor e a imundície, a mulher não estava mais tão consciente assim. A
luminosidade, por mais parca que fosse, a deixava atordoada e causava-lhe dores
de cabeça. Contudo, não era suficiente para nublar seu instinto de
sobrevivência, de forma que apenas fechou os olhos e aproveitou: bebeu parte da
água que jogaram em seu corpo, e comeu o pão duro e as batatas quase podres que
estavam esquecidas a um canto. Devorou tudo, como um animal faminto; agachada,
nua, voraz, a água turva escorrendo de seu corpo esquelético e trêmulo.
E a comida
causava-lhe dores no estômago.
Ela comeria muito
mais, mas os guardas a arrastaram para longe, colocaram ferros em seus punhos,
amordaçaram-lhe a boca e levaram-na, ainda nua e molhada, para aquele primeiro
salão, com tão nobre corte, no qual se encontrara havia algum tempo atrás.
Desidratada,
subnutrida e fraca, intolerante à luz e incapaz de falar, ela apenas ouvia os
discursos em língua desconhecida, os olhos semi-cerrados: era dia, e por entre
as altas janelas, entrava a luz do sol, que machucava-lhe os olhos.
A mulher abaixou
a cabeça, encolheu-se em sua nudez, e esperou que o falatório ininteligível
terminasse. Enfim, ouviu algo que compreendia: o velho que falava alemão
discursava, como que rezando, e o que ele dizia não soou como surpresa para
ela.
Acusava-a de
tudo: vampirismo, imortalidade, lividez, magreza, bebia avidamente o sangue em
água que lhe foi oferecido, atacou camponeses, falava em línguas ancestrais,
violava todas as leis de decência. Era um vampiro. Tinha sede de sangue humano.
Então, por entre
sua mente nublada de sombras e fome e traumas, um pensamento obscuro começou a
brotar naquela mulher torturada. Um pensamento obscuro, mas que lentamente foi
escalando as escadas da sua mente maltratada até a superfície, e ela começou a
ponderá-lo com o resto de sanidade que lhe restava...
Mas antes que
pudesse pensar conscientemente nele, ouviu a voz num idioma reconhecível dizer
algo, e o que ela entendeu do longo discurso em palavras difíceis foi o
seguinte:
— Irás ser serva
desta corte, delatarás a nós os esconderijos de tua espécie, relevarás teus
segredos e alquimias... E quando estivermos satisfeitos, serás exposta ao sol,
para enfim encontrar o destino que enganaste: a morte.
Ela só estava
levemente ciente de seu destino, pois enquanto ouvia o homem falar em alemão
difícil, tudo o que conseguia pensar era ainda estou com sede.
E a sede só
aumentava...
***
Na primeira noite
que foi levada aos aposentos magisteriais, havia pelo menos trinta pessoas
ilustres esperando para vê-la, como que esperando pela nova atração do
zoológico ser exposta. Usavam todos suas melhores roupas, os homens e mulheres
que moravam naquele palacete, em uma hierarquia confusa e indistinta, a qual o
vampiro que era a prisioneira não fora apresentado.
A criatura vinha
a ferros, amordaçada, agora cobrindo sua nudez com uma manta suja. Antes,
haviam-na providenciado mais uma tigela de sangue diluído em água, e mais uma vez,
ela havia bebido avidamente do líquido vermelho, e a cada gole que dava,
esquecia-se de algo que não deveria esquecer.
Quando chegou aos
aposentos magisteriais (um grande salão de festas privadas, próprio para orgias
daqueles homens e mulheres ilustres), foi amarrada a uma estrutura de madeira e
ferro, que a obrigava a ficar ajoelhada, a cabeça pendendo molemente dos
ombros, os braços abertos, tal qual um Cristo decaído. Foi-lhe tirada a manta,
expondo toda a sua desnutrição e tortura.
Ela ainda sentia
as dores da privação. Ainda sentia a náusea, e a loucura tão vívida, e as
pessoas eram-lhe como estranhas criaturas das quais ela queria distância,
apesar de ansiar por contato humano, e as luzes das tochas e castiçais
doíam-lhe os olhos, as vozes, aquela imensidão de lugar os rostos e sorrisos
perversos e curiosos as mãos em seu corpo castigado a música as roupas a língua
os dentes a faca o sangue em seus pulsos e bocas e línguas alimentando-se dela
e seu sangue que pingava e as taças cheias dele e a sede...
A sede.
Não ia embora
nunca.
Quando mais um
jovem afeminado aproximou-se de um de seus pulsos cortados para encher sua
taça, o vampiro lembrou quem era, e que não poderia morrer ali, mesmo que
esvaíssem todo o seu sangue inumano.
*
Meses depois,
quando fora levada pela décima vez ao aposento das orgias, a mulher vampiro
sentia mais sede do que quando estava presa sem água ou comida. Todo o sangue
misturado com água que lhe era dado não era suficiente: ela ansiava por mais, muito
mais. Sua consciência havia se diluído naquela água de sangue que a
alimentava, os guardas ficavam cada vez mais apavorados em ter que carregar
figura tão mórbida pelo palácio.
Presa no mesmo
mecanismo de sempre, dessa vez os palacianos foram mais rápidos e objetivos:
cortaram-lhe logo os pulsos, encheram suas taças com o sangue do vampiro,
brindaram à vida eterna que roubavam dela; um ritual que já havia se tornado
quase mecânico para aquele grupo de vampiros humanos.
E beberam.
E misturaram o
sangue do vampiro com vinhos e destilados, e dançavam ao som de terrível
música, inebriados, zombavam da criatura cativa, cuja cabeça mal se sustentava.
A sede era tão
insuportável...
A orgia tomava
seu rumo livremente, aqueles homens e mulheres intoxicados por bebida e sangue,
loucos por juventude e vida eterna, chupando e lambendo, arranhando, gemendo,
forçando, gozando... Tudo ia como às noites anteriores.
Até que alguém
cometeu um erro.
Desvairada e
insensata, uma jovem da corte aproximou-se do vampiro para beber mais sangue
imortal e, incapaz de segurar a taça, largou-a no chão com violência. O
delicado cristal espatifou-se, e com os pés descalços, a moça pisou sobre os
cacos, ferindo-se.
Contudo, estava
tão inebriada que mal se dava conta disso. Ela apenas inclinou-se para o pulso
sangrento do vampiro e chupou o sangue com fervor, deliciando-se com o líquido
quente em sua boca.
Mas o vampiro não
estava morto, nem adormecido: a mulher vampiro estava bastante acordada, e com
muita, muita sede... O cheiro tentador de sangue impregnava suas narinas,
que por muito tempo só sentiram o odor fétido de celas e o cheiro insalubre de
sangue em água... Mas aquele cheiro de sangue fresco, quente, puro...
— Meu amor, me
solta... — o vampiro sussurrou.
A jovem não
entendia, mas em sua embriaguez, achou fantástico a criatura falar. E ao
levantar os olhos para retrucar em sua própria língua, foi fisgada pelo olhar
de encantadora de serpentes do vampiro, que não precisava falar o mesmo idioma
de sua presa para persuadi-la, suavemente, a libertá-la de suas correntes e,
então, oferecer seu sangue humano à criatura.
Ao nascer do sol
do dia seguinte, não havia sequer um único sobrevivente no aposento
magisterial. O lugar era um espetáculo de sangue e mutilação, uma janela de
alabastro quebrada, denunciando a rota de fuga daquela terrível criatura...
O primeiro
vampiro daquele mundo estava à solta, uma sombra de humanidade, criada por
homens e por seu próprio instinto de sobrevivência, abandonada num universo que
não era o seu, afetada pelo distúrbio que isso causava em sua mente, esquecida
na escuridão de uma cela, sem nada além de si mesma.
É assim que se
cria um verdadeiro ser da noite.
E foi assim que
aquela a qual chamavam Elisa, uma bela jovem circense, encantadora de
serpentes, tornou-se Naia, a mãe de todos os vampiros, esquecida de seu próprio
nome, de sua humanidade ou origem.
Havia uma única
coisa, porém, que o vampiro sedento de sangue não havia esquecido: seu nome era
Karl Schlüsselring, e ele morava num lugar além daquele rasgo luminoso no ar,
que estava escondido na antiga floresta próxima ao palácio. Além disso, a única
coisa que perturbava o primeiro vampiro do mundo, e que parecia nunca acabar,
como se ainda estivesse presa numa cela sem esperanças, resumia-se a uma
palavra: sede.