PREÂMBULO
A Chuva
*
Havia começado em Janeiro, depois do eclipse, e não havia parado
mais. Hoje completaria um ano e dez meses de chuva ininterrupta.
Começara na Terra do Fogo, no extremo sul do continente, logo depois que
o eclipse acabou e, lenta e vagarosamente, as estranhas nuvens vindas
do pólo sul se espalharam pelos céus do Chile e da Argentina, até
chegarem aos vizinhos, até chegarem a todos os lugares. Em questão de
semanas, as nuvens estranhas estavam em toda parte. Ou pelo menos, em quase
toda parte. Os relatos eram de que, aparentemente, a Chuva (ainda?) não
havia chegado completamente na Colômbia e na Venezuela, nem no extremo
norte das Guianas Francesa e Inglesa e do Suriname. Nesses países, Ela
havia parado ao sul, aproximadamente na mesma latitude da cidade de
Bogotá. Todo o resto do continente americano, porém, estava emerso em
chuva e nuvens. Os noticiários internacionais passaram a nos chamar de
“Países Emersos”.
As pessoas vêm tentando desesperadamente entrar em território
colombiano ou venezuelano. Enfrentar o mar violento dos dois lados do
continente não é mais uma opção: eles se tornaram inavegáveis, e em
nossos céus helicópteros e aviões caem como moscas tontas, arrebatadas
por ventos fortes e visibilidade zero… Porque nos mares a Chuva é mais
violenta e as nuvens, mais densas. Ou pelo menos, é o que dizem. Daqui
debaixo, e mesmo com um telescópio simples, podemos observar essas
nuvens anômalas que nos castigam. Colômbia e Venezuela são os únicos
caminhos seguros para longe das nuvens estranhas, para além da Linha do
Equador, disso todo mundo sabe.
Em terra, a Chuva não é torrencial. É mansa, quase que convidativa…
Quando se espalhou, ninguém realmente se preocupou. Depois de um mês,
toda essa mansidão foi vista como um deboche à humanidade. E depois de
um ano, causou tantos estragos quanto um tsunami. Os transtornos
públicos vêm sendo imensos. As hidrelétricas, quase todas, viraram
História. As multinacionais debandaram. As cidades e comunidades
ribeirinhas foram quase que completamente engolidas pelos rios. O mar
engoliu a beira-mar. Os pontos mais seguros do continente são os de
altitude. Houve uma migração em massa depois que as represas por quase
todos os Países Emersos estouraram, todos correndo para cidades altas ou
construindo Cidades Inventadas. O que se sabe é que nas terras do rio
Amazonas é impossível viver em terra firme, e que das nossas grandes
cidades à beira-mar só restaram praticamente os morros e os altos picos
dos arranha-céus de luxo abandonados. Os Andes agora são a melhor coisa
que temos: quem chegar lá primeiro é Rei, dizem. O problema é chegar lá…
Ninguém sabe explicar as nuvens. Cientistas do tempo, físicos,
especialistas em mudanças climáticas… Ninguém entende ou explica a
Chuva. E, no entanto, cá está ela, tão real quanto qualquer outra coisa.
Eu não sei como explicá-la, mas o que não faltam são teorias. Aqueles
que ainda conseguem acesso a internet e à energia elétrica para carregar
baterias, espalham histórias das mais absurdas às mais sensatas. Não
sabemos em que acreditar, e acaba-se por acreditar em qualquer coisa. No
nosso rádio de pilha, (e temos mais de trezentas pilhas estocadas na
Casa), ouvimos todo tipo de absurdo. Há os pregadores, os desesperados,
os politicamente corretos, os místicos, os governantes, os ingênuos… Com
a produção e alcance televisivos drasticamente diminuídos, o rádio é o
nosso salvador, aquele que nos une. Em algum momento, porém, as pilhas
vão acabar, ou essas nuvens anômalas se tornarão tão densas que a
transmissão, já bastante prejudicada, será completamente anulada…
Ao fim do primeiro ano, soubemos pelo rádio, foi notícia em todas as
rádios de todos os países (nosso aparelho recebe ondas curtas, médias e
longas): houve suicídios coletivos. Culparam o tempo nublado por causa
da depressão das pessoas… E não podiam estar mais certas. Um pregador
apocalíptico equatoriano, com altos índices de audiência, promoveu o
evento. E não houve quem o impedisse. As preocupações e prioridades,
agora, são outras.
As forças venezuelanas e colombianas se uniram, e ainda são
assistidas pelos exércitos dos países Pra Lá Da Chuva. Eles abandonaram a
politicagem e o discurso humanitário e passaram a exterminar as hordas
de imigrantes que tentam se aproximar dos países. O caso não é tão grave
nas Guianas nem no Suriname, apesar do desastroso aumento populacional
no norte desses países, que também tentam combater a invasão sem nenhuma
pretensão humanitária.
A imprensa e as Nações Unidas fazem cara feia – mas é tudo o que fazem.
Eu, que um dia morei na submersa Recife, agora me abrigo no ponto
mais alto que consegui na Serra da Borborema. Tenho um observatório
amador, é praticamente o único da região. Não me abriguei nas Novas
Cidades Inventadas pelo interior do Brasil – fiz minha própria casa, com
minha família e alguns braços alugados.
É melhor assim, longe das multidões. Em tempos de desespero, cão come
cão, apesar de certas comunidades religiosas terem se mantido bastante
unidas, além dos grupos de retirantes do litoral que vêm das mesmas
regiões… Mas existe um limite para essa unidade, e eu sei disso porque
vi acontecer em Recife.
Depois de dois meses seguidos de chuva, eu já havia começado a prever
o pior. As enchentes estavam tornando a vida na cidade impraticável, e
foi então que decidimos nos mudar. Eu e meu marido concordamos que o
melhor seria um lugar alto. Serra da Borborema. Cogitamos a Chapada
Diamantina, mas era mais distante e a viagem, mais custosa. Começamos a
construir nossa Casa-Observatório três meses depois da Chuva, e bem
antes das Grandes Calamidades.
Meus dois filhos que ainda moravam conosco protestaram, nunca foram
tão paranóicos quanto nós, mas já estava tudo decidido. Nosso filho mais
velho, Manuca, já casado e morando com sua esposa, juntou-se a nós.
Vendemos os dois apartamentos em Recife, além do terreno em Aldeia (que
saiu quatro vezes mais caro do que compramos, devido à altitude da
região), e passamos a investir na construção da Casa-Observatório no
alto da Serra da Borborema.
Não podíamos ter feito nada melhor com nosso tempo e dinheiro
naqueles momentos de crise. As poupanças, a venda de algumas jóias e
objetos de luxo, cada centavo foi investido na Casa, que nos custou mais
do que esperávamos por causa do transporte do material. Passamos a
morar num casebre improvisado enquanto a construção não ficava pronta.
Os mais novos só faltaram chorar quando saímos de Recife, uma parte do
caminho de bote, outra, de trator, até pegarmos o carro. Apesar dos
protestos, eles sabiam. Estávamos deixando uma cidade à beira de um
colapso – estávamos deixando para trás uma cidade já morta e que apenas
não sabia disso ainda.
Havia outros como nós, alguns poucos que saíram antes das Grandes
Calamidades. Porque na boca do mar, não há para onde correr, senão para
longe dela. As soluções temporárias que as grandes construtoras e a
prefeitura conjecturavam e, algumas vezes, até colocavam em prática,
nunca seriam suficientes.
Nós fugimos. Abandonamos nossa cidade à própria sorte, e isso nos
doeu. Mais tarde, durante as Grandes Calamidades, ouviríamos notícias
pelo rádio sobre o caos, sobre o cão-come-cão que se instaurou na
submersa Recife.
O Exército era o mesmo que nada. Depois das Grandes Calamidades que
se espalharam por todos os Países Emersos, em maior ou menor grau, a
deserção foi prática comum entre os militares. Pegavam armas e munição,
suas famílias, às vezes um helicóptero, e fugiam. Os nacionalismos se
dissolviam na suave e constante Chuva que caía, como papel manteiga.
Com a Chuva perpétua, a construção demorou mais do que o esperado,
mas havíamos contratado ótimos homens, que estavam igualmente dispostos –
e desesperados – para deixarem Recife. Não lhes pagamos com dinheiro,
que agora pouco valia. Demos, sim, pequenas casas em Arcoverde, cidade
na porta do sertão pernambucano e bem longe do mar, que compramos com
parte do dinheiro que conseguimos juntar. Era tudo o que eles queriam:
sair com suas famílias de Recife e ter um lugar para onde ir. As casas
eram minúsculas, risíveis, mas brilhavam com o ofuscante brilho da
esperança.
Trabalhamos sem descanso. Era a única coisa que mantinha nossas
mentes minimamente calmas. Tínhamos problemas de provisões, mas não de
água. Bebíamos da água que caía do céu, sem luxos ou tratamentos
higiênicos. Os grupos se revezavam para ir comprar mantimentos na cidade
próxima, mas era cada vez mais difícil e mais caro.
A comida, hoje, é parca e com pouca variedade, mas isso não é um
problema exclusivo de nossa reclusão: em todo lugar está assim. As
colheitas morrem afogadas. A comida enlatada é disputadíssima, o
abastecimento dos mercados é custoso e difícil. Não sei quanto tempo
mais iremos agüentar.
A ajuda externa não virá.
As promessas são muitas, os discursos são intermináveis, políticos se
elegem nos outros países em nossa defesa, mas, ao final, estando no
Brasil ou no Peru, cercado por água em algum arranha-céu de luxo,
encarapitado em montanhas ou serras, agrupados em Cidades Inventadas ou
isolados, todos dos Países Emersos sabem: nós estamos sozinhos.
E sozinhos morreremos.