Todos na região de Rosamonte sabem quem os bruxos são, e como eles agem.
Contudo, são incapazes de proteger-se contra os ataques mágicos desses homens e
mulheres cruéis. Nenhuma bênção adianta, nenhum alho pendurado na porta, as
lanças e facas dos caçadores não os matam... E os bruxos vêm e atacam suas
crianças e mulheres.
As crianças são as preferidas, aliás. Eles vêm à noite e as levam. Ou as
matam. Ou levam apenas uma perna, ou um braço, ou uma mão, para seus rituais pavorosos
e malignos...
As pessoas de Rosamonte sabem quem os bruxos são, e como eles agem... Mas
nunca conseguem evitá-los. Desde sempre estão fadados a serem atacados por essa
seita macabra, e os avós de seus avós já diziam que quem morava na região do Rosamonte
estava preso aos caprichos inescrupulosos e incompreensíveis dos bruxos.
Nunca nenhum bruxo falou. Raramente são vistos, até. Mas todas as aldeias
de Rosamonte sabem que nas Montanhas Rossas habitam os bruxos, que voam em seus
galhos de árvore sobre as cidades, aterrorizando como corvos os que ousam ficar
a céu aberto quando o sol se põe. De dia, dizem, se disfarçam em pele de
animal, pois sua pele real não tolera a luz ou o calor do Sagrado Sol. Devem,
então, percorrer as aldeias e florestas disfarçados de animais, que são quase
indetectáveis. Em cada aldeia há um método diferente de reconhecer um Bruxo em
pele de animal: em algumas, dizem que tal animal terá pavor de água e olhos
vítreos; em outras, diz-se que basta que tenha a cara toda preta para ser um
Bruxo; e nas aldeias mais próximas do cume das Montanhas Rossas, dizem que é
apenas matando um animal que se sabe do Bruxo: basta estripá-lo, e a cabeça do
bruxo sairá junto com os órgãos internos do bicho, seja ele gato ou mesmo um
macaco.
Os habitantes de Rosamonte sabem quem os Bruxos são, e como vivem, e como
se disfarçam, mas parecem ser incapazes de capturar um ou mesmo matar um desses
amaldiçoados. O que eles não sabem, contudo, é que os bruxos de Rosamonte não
são os únicos bruxos do mundo.
Aqueles poucos rosamonteses que deixaram seu lar para percorrer o mundo
podem confirmar: além de Rosamonte, pouco se fala sobre bruxos, e poucos até
são os que acreditam nas histórias das Montanhas Rossas.
Mas eles estão lá. Os bruxos, mundo afora, mas não ousados e
aterrorizantes como os da região da Serra do Rosamonte. Isso faz com que alguns
desses rosamonteses viajantes pensem... Pelo menos, aqueles que voltaram,
pensam muito sobre isso.
O que há de errado em Rosamonte? O que há para que os Bruxos de Rosamonte
sejam tão inescrupulosos com meia dúzia de aldeias de camponeses? Por que
ninguém os vê, o que querem, o que fazem com as mulheres e crianças que
seqüestram, matam ou mutilam?
O caso mais aterrorizante havia sido o dos gêmeos albinos, acontecido há
pouco mais de cinco décadas atrás. Um menino e uma menina, nascidos muito cedo
e muito pequenos, pálidos como a morte, mas ao rebentarem da barriga de sua
mãe, choraram a altos brados, vivos como qualquer cria. O consenso geral havia
sido o de que a pobre mulher havia sido engravidada por um Bruxo – quiseram
jogar mãe e bebês na Fenda Funda, um gargalo no meio das Montanhas Rossas. O
que os impediu foi o que a velha Parteira disse:
“Não ousem tocar nesses bebês ou em sua mãe! Não ousem, rosamonteses
tolos!; pois saibam que a Morte cairá sobre qualquer pessoa que atentar contra
essa família! Os Bruxos rondam essa casa, eles querem esses bebês! O menino e a
menina podem ser seu caminho para a salvação, ou o passo final para a perdição!
Ouvi, rosamonteses tolos, ouvi o que essa Velha Parteira tem a dizer!” Era uma
noite quente de verão quando ela falava aos homens nervosos, prontos para
arrancar mãe e filhos de seu casebre e atirá-los na garganta da montanha.
“Essas crianças só têm dois caminhos a escolher: o dos feiticeiros ardilosos
que percorrem nossas casas e aldeias e seqüestram nossas crianças e mulheres;
ou o caminho do Sagrado Sol, e serão abençoados, e terão a força que nós nunca
tivemos para acabar com os Bruxos de Rosamonte! Ouvi, rosamonteses tolos, ouvi! Se lhes fizerem algum mal, essas
crianças correrão para os braços dos Malignos! Mas, se cuidarem delas, se as
mantiverem seguras e fortes, elas crescerão para nos salvar! Eu vi nos olhos da
Morte, que me contou pela Boca da Noite, soprada no Vento da Vida!”, terminou
ela, com uma oração bem conhecida daquele povo montanhês, sempre dados a preces
e rezas.
Depois de devidamente advertidos, os rosamonteses desistiram do ataque à
pobre mulher e ao seu casal de filhos albinos, e seguiram o conselho que lhes
foi dado: a partir daquela noite, todos na aldeia e nas proximidades
concordaram que o melhor era zelar pelos irmãos albinos, que foram nomeados
Esamé e Marso.
Extremamente sensíveis à luz, sofreram um pouco até que sua mãe e seus
guardiões percebessem que era melhor cobri-los dos pés à cabeça para não
ferirem a pele tão estranhamente clara das crianças. Quando bebês, eram fracos,
mas bastou começarem a beber do peito da mãe para engordarem e crescerem.
Rosamonteses de outras aldeias vinham visitar Esamé e Marso para lhes dar
algum mimo ou simplesmente para conhecer as crianças que seriam seus
salvadores. Ninguém, no entanto, sabia exatamente o que esperar de uma dupla
tão excepcional de irmãos. A Velha Parteira tornou-se a Madrinha, sempre atenta
às crianças e a todos que as cercavam.
Contudo, à medida que Esamé e Marso cresciam, os aldeões iam se
decepcionando dia após dia. As crianças não estavam se saindo exatamente como
era ansiado pela maioria dos rosamonteses. A princípio, acharam que era apenas
uma questão de prática, mas nada adiantou. O casal de gêmeos não era
extraordinariamente forte: perdiam constantemente das outras crianças nos jogos
de corrida ou bola; e sua pele sensível os impedia de labutarem no campo. Os
gêmeos eram bastante falhos também de memória: nunca se lembravam de todos os
rostos e nomes que os cumprimentavam. Não demonstravam nenhuma grande
inteligência, não eram bons nas tarefas que lhes eram designadas, eram deveras
brincalhões e avessos a promessas e comprometimentos.
Quando completaram nove anos, mais nada era esperado deles.
Os aldeões em geral haviam perdido toda a esperança que tinham nos
gêmeos, excetuando, talvez, alguns rosamonteses que moravam mais distantes e as
duas mães das crianças, que haviam sido estigmatizadas como preguiçosas e
bagunceiras.
Eram crianças hiperativas: não conseguiam passar muito tempo sem criar
algum plano para atormentar a vida do padeiro, ou do moleiro, ou de qualquer
outro membro da aldeia em que viviam. Começaram a ser detestados; quando muito
é esperado e pouco é visto, a decepção torna-se desprezo, e não foi diferente
com aquele povo da montanha.
Esamé tornara-se uma menina esguia e lânguida, cujo papel na dupla de
albinos era planejar os ataques à paz e à calmaria da Aldeia de Políria. Marso,
por outro lado, era o executor dos planos: não por sua habilidade física, pois
não era o mais forte dos rapazes, mas sempre conseguia dar um jeito de fazer
com que as coisas acontecessem como ele precisava que acontecessem. Colocando
um brinquedo no meio da estrada, fazia com que os filhos pequenos do moleiro
parassem e atrasassem o pai, o que, por sua vez, fazia com que o pastor das
cabras tivesse tempo para chegar no meio da estrada e interditá-la com seu
rebanho, o que significava que depois de devidamente pisoteado, o solo ficaria
fofo o suficiente para Marso conseguir enterrar bombinhas que explodiriam
quando o moleiro passasse com sua charrete.
Depois de certo tempo, era de consenso geral que o casal de irmãos era um
caso perdido: os Bruxos haviam enterrado seu veneno muito fundo, as crianças
eram naturalmente perversas e, portanto, não eram mais as salvadoras do povo da
Serra do Rosamonte. Não havia outra explicação, diziam.
O caso mais aterrorizante da história dos Bruxos de Rosamonte, porém, não
foi o de terem colocado na Aldeia de Políria casal tão singular e destestável
de irmãos. Foi o que se sucedeu nove anos depois, quando as crianças já não
eram o centro das atenções dos rosamonteses.
Naquela noite fria de Julho, os Bruxos atacaram novamente, e dessa vez, o
alvo foi Políria. Havia seis meses que não se ouvia notícia de ataques a
rosamonteses, e todos estavam mais tranqüilos do que o normal. Contudo, naquela
noite, o fato mais horrível se deu, pois, ao invés de simplesmente seqüestrar
uma criança ou mulher, os Bruxo fizeram algo que não era feito há muito, muito
tempo. Poucos eram os homens e mulheres que haviam presenciado aquele tipo de
ataque, apesar da história correr solta na boca daquele povo da montanha.
Naquela noite derradeira, quando todos já estavam em suas casas, encolhidos em
suas camas, e a lua já ia alta no céu nublado, a sombra dos Bruxos passou pela
Aldeia de Políria, tão rápida e fatal como antes, e invadiu uma casa, como era
de se esperar – entretanto, foi a casa mais inesperada possível.
Os Bruxos de Rosamonte, naquela noite fria de Julho, quando a lua já ia
alta e as pessoas se encolhiam em suas camas, invadiram a casa do casal de
gêmeos albinos e levaram consigo uma parte de cada criança: Esamé perdera a mão
esquerda, e Marso, um pedaço da perna direita. Os gritos de dor e pânico
acordaram a aldeia inteira, juntamente com os choros da Mãe.
O Açougueiro e o Boticário foram chamados com urgência, e enquanto um
analisava os cortes das crianças febris, o outro preparava emplastros.
“É um corte perfeitamente limpo, senhor”, observou o Açougueiro,
segurando o braço de Esamé, que esperneava. “Perfeito, seria preciso uma lâmina
de outro mundo para conseguir cortar com tanta destreza, senhor!” murmurava
ele, estupefato.
O Boticário inclinava-se sobre as crianças e dava-lhes de beber o
destilado mais forte que tinha para aliviar a dor. Não era especialista em
cortes, pouco se via desse tipo de ferimento em Políria, mas ao limpar o sangue
dos ferimentos de ambas as crianças, o velho Boticário sabia que seu colega
Açougueiro estava certo. Era um corte limpo demais para ser daquele mundo...
Naquela noite, enquanto debruçado sobre as crianças, o Boticário sentiu um
arrepio que só sentira quando os Bruxos de Rosamonte haviam visitado sua casa
há muitos anos atrás e levado sua irmãzinha.
As amputações haviam sido feitas com maestria: os cortes, contra todas as
probabilidades, cicatrizaram rápida e imaculadamente, apesar do Boticário saber
que os emplastros e remédios que dava às crianças eram fracos demais para tal
tipo de ferimento. No entanto, não houve infecções. A bem da verdade, e isso o
Boticário comentara com a Parteira, era que aquelas amputações cicatrizaram rápido demais, e muito bem... Algo, de
fato, sobrenatural.
O casal de gêmeos albinos nunca mais fora o mesmo. As brincadeiras
acabaram, parecia até que sua felicidade havia sido levada com os membros
mutilados, e os aldeões de Políria começaram a sentir falta das antigas
crianças. Contudo, as amputações não pareceram ter sido a única coisa que os
Bruxos fizeram na casa dos gêmeos em sua visita noturna: depois daquela noite,
a Mãe das crianças começara a tossir. Muito.
Foi uma questão de pouco mais de dois meses para finalmente perecer com a
tosse, que logo se tornou sangrenta.
A raiva e descontentamento que os rosamonteses sentiam pelos gêmeos
albinos foram quase que completamente dissipadas. Depois da morte da Mãe, Esamé
e Marso foram morar com a Madrinha, a Parteira de Políria e das outras aldeias
menores próximas. Todos prestaram suas condolências, mas as crianças pouco
prestaram sua atenção à elas.
Os meses passaram, e o casal de gêmeos não voltou a ser o mesmo.
Encolheram-se e silenciaram na casa da Parteira, que fizesse o que fizesse, não
conseguia trazê-las para fora de casa.
O cochicho corria solto por todas as vilas e aldeias... Os Bruxos de
Rosamonte haviam atacado sua própria espécie, era o que diziam. Se as crianças
não eram seus salvadores, e sim comparsas dos Bruxos, por que foram mutiladas?
Ninguém sabia responder: naquele momento, nada fazia sentido. Apesar de a raiva
ter-se dissipado, os rosamonteses estavam permanentemente desconfiados daquele
casal de gêmeos albinos, porque as pessoas de Rosamonte sabem quem os bruxos
são, e como eles agem... Mas nunca ninguém soube por quê.
Talvez fosse uma armadilha, ponderavam alguns mais paranóicos, como o
moleiro, para fazê-los acolher e confiar no casal de irmãos albinos e, em
seguida, serem finalmente destruídos pelos Bruxos. Outros mais crentes, como o
Açougueiro, pensavam que, na verdade, os gêmeos se arrependeram de se juntarem
aos Bruxos de Rosamonte e, como castigo, foram mutilados. Os paranóicos, aqui,
retrucavam que não fazia sentido: se assim o fosse, eles teriam matado Esamé e
Marso, não apenas amputado as crianças. Enquanto que os crentes retrucariam
que, talvez, os gêmeos albinos fossem fortes demais para ser assassinados pelos
Bruxos; uma mágica qualquer os protegia. E então seriam acusados de serem muito
crentes, enquanto que eles, por sua vez, acusavam os paranóicos de serem muito
paranóicos e, assim, ninguém se acertava nunca.
Houve um grande hiato de nove meses entre a mutilação das crianças
albinas e o próximo ataque, que foi como era esperando: invadiram uma casa da
Aldeia de Plágia e levaram uma mulher. Nada de surpreendente. Alguns haviam
imaginado que, no próximo ataque, terminariam de eliminar os moradores da
região das Montanhas Rossas, mas não foi caso.
Cinco anos depois da mutilação dos albinos, a Nona Grande Guerra estourou,
e os homens e mulheres fortes foram convocados a servir a um soberano cujo nome
eles mal lembravam. Foi também nesse mesmo ano que Esamé e Marso desapareceram.
O moleiro conta que à noitinha achou que tinha visto duas sombras se
esgueirando para a Montanha dos Bruxos, a maior dentre as Montanhas Rossas, mas
achou que era apenas sua imaginação, ou animais com silhuetas distorcidas.
Acontece que eram mesmo os gêmeos albinos, saindo da aldeia de Políria sem
avisar a ninguém – nem mesmo à Parteira.
Foi a última vez que foram vistos, apesar de poucos serem aqueles que
realmente os viram naquele intervalo taciturno de cinco anos. Ninguém tem idéia
de onde possam ter ido, ou o que foram fazer. Duas crianças albinas mutiladas
perambulando entre as aldeias e vilas da região de Rosamonte atrairia a atenção
de qualquer um, mas ninguém das outras aldeias mais acima na montanha viu
sequer sombra de Esamé e Marso.
Os dois desapareceram.
As conjecturas são muitas e, apesar de terem sumido, jamais desapareceram
das histórias daquele povo montanhês. O caso das mutilações do casal de irmãos
gêmeos albinos entrou para os anais de história dos rosamonteses, se acaso eles
tivessem, e por muito tempo as peripécias sobre Esamé e Marso fariam parte das
histórias para dormir que as Mães e Madrinhas daquelas aldeias contavam a seus
filhos. Muitos seriam causos inventados, outros, deturpados, mas os gêmeos
albinos não são esquecidos.
Todos na região de Rosamonte sabem quem os bruxos são, e como eles agem,
o que ninguém sabe é exatamente qual foi a história de Esamé e Marso, e o que
se passou depois de seu sumiço. Porque uma coisa era certa: um ano depois da
Nona Guerra ter começado, e um ano depois de Esamé e Marso terem desaparecido,
as coisas nas Montanhas Rossas mudaram... Porque todos sabiam quem os bruxos
eram e como eles agiam, o que ninguém sabia era o que havia acontecido com eles
para desaparecerem tão misteriosamente do quotidiano dos rosamonteses.
Apesar do pouco tempo que havia se passado, ninguém associou o sumiço das
atividades dos Bruxos com o sumiço de um certo casal de gêmeos albinos
mutilados da Aldeia de Políria.
O que se passou no topo da mais alta das Montanhas Rossas não é um mistério: afinal, só o seria se
alguém soubesse que há um mistério a ser solucionado. Como
esse não era o caso, não havia mistério algum.
Os Bruxos de Rosamonte haviam-se ido, e esse era o fim da história para
aqueles montanheses pacíficos, já tão atormentados pela Grande Guerra. Não
havia grandes perguntas a serem feitas, apenas graças a serem dadas. Os anos
passaram, os Bruxos e os gêmeos albinos viraram história para dormir. A
Madrinha Parteira morreu, bem como o Boticário, o Açougueiro, o Moleiro e todos
os outros que um dia conheceram Esamé e Marso... Mas os gêmeos albinos não.