ACONTECE que depois de ouvir uma história tão fantástica
quanto aquela, que envolvia uma linda princesa adormecida, num rico castelo,
por trás de um muro de espinhos e um profundo fosso, a imaginação do jovem
príncipe foi à mil. Que segredos, que belezas, que riquezas se esconderiam ali!
Uma bela princesa amaldiçoada, apenas esperando pelo seu beijo! Aquela seria sua história, pela qual ele ficaria
conhecido por toda a eternidade... Contrataria trovadores para escrever sua lenda,
espalharia seu feito heróico por todas as terras, por todos os povos, por todos
os séculos!... O jovem príncipe entraria para os Anais da História como o
grande guerreiro que ousou penetrar tal castelo encoberto por espinhos e esquecimento!
As histórias dos
velhos moradores daquela vila quase abandonada haviam criado na mente do
príncipe um amor glorioso, um feito memorável, a história que ele estava
esperando para protagonizar. Nada tiraria isso dele e, enquanto cavalgava,
acompanhado por seu escudeiro; um velho local; e seu menestrel, Alaric, o jovem
príncipe pensava na bela noiva adormecida que o esperava na mais alta torre do
castelo. Ela seria linda, delicada, e o amaria com todo o seu ser. Nesses cem
anos que permanecera adormecida, ela devia ter sonhado com seu rosto, ansiado
por seu beijo, imaginado o seu toque, que não poderia ser confundido com nenhum
outro. Ao longo do caminho, o príncipe quase se convencera de que por toda a
sua vida havia sonhado com aquela princesa adormecida, apesar de nunca ter
ouvido falar dela antes.
Seu avanço era
lento: a estrada para o castelo há muito havia sido encoberta por vegetação
selvagem, as raízes e as pedras no caminho faziam o avanço do cavalo lento e
sôfrego. O velho reclamava de cansaço: apesar das moedas que o príncipe
havia-lhe prometido, era velho e reclamão, e não se satisfaria enquanto não
pudesse arrancar mais umas moedinhas do nobre. Seu escudeiro, por sua vez,
estava assustado com aquela viagem para encarar um castelo amaldiçoado – tinha
pavor de magia e tudo que estivesse relacionado a ela. Alaric, o menestrel,
parecia ser o único tão entusiasmado quanto o próprio príncipe, mas isso não limpava
o caminho a sua frente nem ajudava no avanço montanha acima.
Ao todo, o grupo
levou quatro dias para escalar o caminho encoberto por floresta, e quando
finalmente chegaram ao topo da montanha, onde se quedava o castelo adormecido, o
Príncipe estava resoluto em sua ideia de amor eterno e riqueza que aquela pobre
princesa adormecida lhe prometia. A caminhada de sol a sol, o cansaço e a fome
haviam misturado-se no jovem Príncipe, resultando num amor incondicional e
inquestionável – ele estava apaixonado pela princesa amaldiçoada, não havia
dúvidas quanto a isso. Enquanto eles subiram, por aqueles quatro dias, o
Príncipe sentara-se com o menestrel Alaric e relatara-lhe sobre o seu crescente
amor.
“Parece que quanto
mais nos aproximamos, mais eu me apaixono!”, confessou ele, na terceira noite
de caminhada. Alaric, como todo bom menestrel, tomava nota dessa bela história
de amor, gravando com tinta e pele os devaneios românticos do seu mestre, o
Príncipe. Também ele ansiara por uma boa história para contar, e quando
primeiro ouviu sobre a bela adormecida no castelo, convenceu-se de que
finalmente havia chegado a hora do seu príncipe – e, consequentemente, a sua hora também.
Quando se depararam
com o grande muro de espinhos, a comitiva desanimou. O velho argumentou que
dali nada valeria: quando nascera, o castelo já estava amaldiçoado, ele nada
sabia sobre os caminhos para depois do muro de espinhos. O príncipe lhe pagou a
quantia que eles haviam combinado (com alguns adicionais ao longo do caminho) e
o velho foi embora, aliviado por deixar para trás o castelo misterioso.
Com apenas seu
escudeiro apavorado e seu menestrel que de pouco servia numa luta, o Príncipe
seguiu: devia haver alguma forma de penetrar o castelo, ponderou ele.
E, de fato, havia.
Sem demora, o Príncipe viu uma brecha no muro, que não era suficiente para ele
passar, é certo, mas que era suficiente para visualizar o que havia por detrás
do muro: um castelo adormecido, envolto em sombras, apesar de ser dia.
O Príncipe inclinou
a cabeça para ver melhor pela fenda, e foi então que se aproximou demais e,
inadvertidamente, cortou o rosto num dos espinhos do muro. Foi o que bastou
para o denso emaranhado de roseiras recuarem: uma gota de sangue do Príncipe certo
fez com que os espinhos minguassem para a terra, deixando o caminho livre para
o prometido da princesa adormecida.
O escudeiro
apavorou-se, e debandou: deixou para trás seu príncipe e o menestrel, tamanho
era o pavor que sentia ante aquela magia infernal. Havia sido criado para temer
tais artifícios ardilosos, e suas crenças, naquele momento, foram mais fortes
que seu compromisso para com seu mestre. O Príncipe, porém, pouco se importava
com o abandono do seu serviçal. De princípio, é certo, ficou surpreso, mas nada
havia de nublar sua determinação em encontrar sua bela princesa.
Restando apenas ele
e Alaric, o menestrel, a dupla seguiu, cruzando a ponte sobre o profundo fosso
ao redor do castelo, até o pátio interno central, onde mulheres, crianças e animais
dormiam. O menestrel a tudo olhava, abismado, enquanto que o Príncipe pouco
caso fazia daquelas proezas.
“Até as moscas nas
paredes dormem, meu senhor!” exclamou Alaric, espantado, mas seu príncipe não
lhe deu muita atenção: ele queria encontrar o caminho para a mais alta torre
daquele castelo.
Enquanto Alaric
parava de pessoa em pessoa, sacudindo-as, vendo-as respirar lentamente (algumas,
até, roncando), num sono ininterrupto de cem anos, imperturbáveis e
completamente vivas, seu príncipe rondava o pátio, em busca da entrada mais
próxima para a torre central. Por fim, decidiu-se pela entrada central, e a
galope, arrebentou as portas de madeira que a cerravam.
Seu menestrel, até
então distraído com as tais proezas mágicas, finalmente despertou de seu espanto
e correu atrás de seu senhor; afinal, tinha que registrar tudo que se passava,
até o momento derradeiro, o encontro com a princesa adormecida.
Não era tão simples
quanto parecia: por horas eles percorreram salões, escadarias e corredores, sem
nunca encontrar as escadas ou a porta que levasse até a torre mais alta.
Percorreram as cozinhas, os salões de festa, o trono do rei (onde ele e sua
esposa dormiam placidamente em seus cadeirões), as escadas mais estreitas, e
nada encontravam.
Será que havia outro
feitiço escondendo o caminho para a torre da princesa?, ponderou o menestrel,
mas seu príncipe não lhe dava mais ouvidos: desde que entrara no castelo
adormecido, um desejo louco de encontrar sua princesa havia tomado conta de seu
ser. Nada mais interessava, nada mais era importante.
Foi apenas quando o
sol já se punha que Alaric, já cansado de todas aquelas pessoas dormindo,
descobriu o caminho para a bela adormecida daquele castelo. Gritou por seu
mestre, que dessa vez, ante às palavras “princesa”, “achei” e “caminho”, galopou
alucinadamente em sua direção.
A porta que Alaric
havia descoberto levava por uma escadaria estreita em caracol: percorrer aquela
subida com o cavalo de batalha estava fora de questão, o Príncipe logo
percebeu, e ordenou: “Alaric, guarde meu cavalo!”.
Alaric, no entanto,
não era um cavalariço, e sim um menestrel, de forma que sabia que sua função
era registrar o encontro derradeiro, e não cuidar do cavalo do Príncipe. Ele
também sabia, pelo que havia observado recentemente, que a paixão do Príncipe
havia se sobrepujado ao bom senso, e que mais tarde ele agradeceria ao
menestrel por ter desobedecido suas ordens e, ao invés de ficar para trás, ter
seguido seu mestre até a Torre Mais Alta, a fim de registrar o grande momento.
A passos
cautelosos, Alaric alcançou o último patamar, onde encontrou a cena perfeita: seu
Príncipe estava inclinado por sobre uma belíssima cama de dossel alto, por onde
rosas espinhosas cresciam, e a tênue luz do pôr do sol acertava em cheio a
cama. A dama que ali se encontrava era de uma beleza pueril, que Alaric jamais
havia visto antes, cujas maçãs do rosto eram rosadas, e cujos cabelos dourados
emolduravam-lhe não só o rosto, mas também todo o corpo, longos do jeito que
eram. A moça, que não devia ter mais de quinze anos, parecia um anjo dormindo
sobre raios de sol.
O jovem menestrel
também podia identificar a beleza do seu próprio senhor, enquanto olhava,
mesmerizado, para a bela adormecida a sua frente: de fronte forte e máscula,
seu queixo era quadrado e seu nariz, romano. Os olhos profundamente verdes do
príncipe estavam enevoados de lágrimas, parcialmente escondidos pelos cabelos
negros que lhe caíam por sobre a testa. A suave barba que surgira nesses quatro
dias de estrada dava-lhe apenas um tom ainda mais forte e elegante.
Alaric já havia
puxado pena e tinteiro para começar a escrever freneticamente quando, enfim, o
Príncipe fez menção de se inclinar um pouco mais, na direção do rosto
encantador da menina. O menestrel, envolvido pela cena, viu-se incapaz de
desviar o olhar daquele momento: sentia que presenciava algo que muitos milhões
de pessoas, num futuro nem tão distante, adorariam ver por si próprias, mas não
poderiam. Em respeito a todas essas pessoas, e a si próprio, Alaric, então,
conscientemente abriu mão de começar a escrever seus relatos e apenas assistiu
a cena, como o bom espectador passivo que qualquer menestrel é.
Ele podia ver no
olhar de fogo do Príncipe todo o ardor daquela paixão que ele criara para si
nos quatro dias de jornada, como se por toda sua vida houvera sido enamorado
daquela princesa desconhecida. Alaric observou como, lentamente, ele se inclinava
sobre a menina e, mais lentamente ainda, cerrava os olhos e tocava, suavemente,
seus lábios contra os dela.
Como a lenda que
ouviram havia professado, bastou beijar-lhe os lábios que, lentamente, os olhos
da princesa abriram-se e, como que acordando de um simples sono, a menina
pestanejou e mirou, confusa, a face ardente do Príncipe inclinado sobre ela.
Alaric estava
pronto para ver o olhar dela se suavizando, o sorriso se abrindo, o amor se
acendendo em seu peito. Ele estava pronto para ver ela erguendo-se lentamente,
apoiada nas mãos, para depois ser ajudada por seu príncipe encantador,
estendendo-lhe os braços, até finalmente ficar de pé, frente a frente com ele,
enfeitiçada por aqueles olhos verdes, e dizer:
“Meu amor...”
O que, porém,
Alaric não esperava era que, quando a bela princesa pronunciasse as primeiras
palavras para o corajoso nobre que havia escalado a montanha e atravessado
muros de espinhos, a paixão ardente e arrebatadora no olhar do Príncipe simplesmente...
se apagasse.
O menestrel poderia
dizer o momento exato em que aquilo acontecera, o momento exato em que o
Príncipe olhara, francamente, para a princesa, e não havia amor em seu olhar.
O Encanto havia-se
quebrado.
Por todo o castelo,
o sono finalmente era erguido e dissipado como que pelo vento: Alaric agora
ouvia o som de pássaros e cachorros, o burburinho do pátio interno, crianças
gritando, a algazarra usual de um castelo vivo e habitado por pessoas.
E ali, parados a
sua frente, estavam o príncipe e a princesa cujo final da história ele havia
planejado contar como “e foram imensamente felizes até o fim de seus dias”, mas
que agora, observando a paixão ardente do Príncipe transformar-se em alheamento
e, deste, para a simples repulsa, virou o mundo literário de Alaric de cabeça
para baixo.
“Meu príncipe?”,
murmuraria a Princesa recém-desperta de um sono de cem anos, confusa, quando
visse seu querido amor dar um passo para trás e soltar-lhe as mãos.
O Príncipe, por sua
vez, sacudia a cabeça, indignado. “Vós sois tão...” murmuraria ele em resposta
“...diferente do que imaginei”.
Alaric quase
derramou toda a tinta no chão naquele momento. “Meu Príncipe!” exclamou ele,
interferindo a cena que saía errada. “Esta é vossa Princesa, a Bela Adormecida
do Castelo Encantado, a menina Rosa de que todos lhe falavam e pela qual vós
vos enamorásseis!”
O Príncipe sacudiu
a cabeça, revoltado. “Não! Essa menina...” ele exclamou, ofendido. “É só uma
menininha... Tão... Sem encanto!”
A Princesa levou
uma mão à boca, chocada. Alaric arregalou os olhos: seus sonhos literários estavam
sendo esmagados na sua frente. O encanto do castelo havia sido quebrado...
Assim como o encanto da história para o Príncipe.
“Mas... meu
Príncipe! Eu mesmo ouvi de vossa boca o quão enamorado estavas, o quanto queria
encontrar o castelo, quebrar o feitiço...”, mas os argumentos do menestrel não
foram ouvidos, e isso ele percebeu: a cada palavra que dizia, o Príncipe balançava
a cabeça negativamente.
“Um sonho, um
sonho... Um sonho louco!” exclamou ele, horrorizado. “Nunca amaria uma menina
sem graça como essa!” a Princesa, ainda em choque, não demonstrou reação física
ao comentário ofensivo, mas Alaric estava a beira de um ataque de indignação. “Eu
amava a glória! Eu amava a ideia! Eu amava a ideia de derrotar um feitiço de
cem anos, de beijar uma princesa amaldiçoada... Mas agora... Agora que está
tudo feito... Essa Princesa... Essa menina...
Eu não poderia amá-la!”
A Princesa caiu de
volta na cama, chorando copiosamente.
“Não! Não! Não!”, a
angústia e a indignação do menestrel causavam-no dor física. Tudo estava
errado, tudo! O menestrel correu para a moça e alisou seus cabelos, numa vã
tentativa de acalmá-la.
“Meu Senhor!”
gritou Alaric, quando ouviu passos na estreita escadaria que levava à Torre
Mais Alta. “Não dizeis isto! Vossos anfitriões sobem as escadas, querem um
noivo para sua Princesa! Querem o Príncipe que está destinado a casar-se com
ela, meu Senhor!”
“Não!” exclamou o
Príncipe. “Não me casarei!”
“Vós sois o
Príncipe da lenda!”
“Não me casarei!”
“Mas meu
Príncipe!...”
“Não me casarei!”
Em questão de
segundos, o menestrel tomou uma decisão: não permitiria que uma história dessas
fosse destruída pelas teimosias de um mero Príncipe. Havia coisas maiores do
que ele... Como os sonhos ambiciosos dum menestrel em busca de uma história.
Num impulso
repentino, Alaric puxou a espada da cintura real, bem como o chapéu de penas de
sua cabeça, e armou-se como o próprio Príncipe faria. Tirou seu colete velho e
trocou-o pelo colete brocado do Príncipe. Estavam ambos sujos pela escalada da
montanha, o Príncipe há muito havia perdido seus trajes mais ricos e, assim, se
olhados lado a lado, não conseguiriam distinguir com facilidade um nobre de um
trovador.
E foi assim que
Alaric, o menestrel sem título ou nome, tornou-se o Príncipe da lenda, quando irromperam
no quarto da Torre Mais Alta o Rei e a Rainha, seguidos de seu séquito, alheios
ao conflito que não deveria existir no coração ambicioso do verdadeiro
Príncipe. Este último, atento ao movimento do serviçal, fez-se ele mesmo de menestrel,
segurando a pena e o tinteiro, e curvou-se diante do Rei daquele lugar.
Foi embora, mas não
sem antes finalizar a própria história, cujo protagonista, ao final, fora
outro, com um “e viveram muito felizes para todo o sempre”. Como pagamento pelo
favor do menestrel, jurou divulgar a história registrada.
Seguiu sozinho e
sem cavalo para o seu próprio reino, onde foi bem acolhido ao voltar, e passou
muitos anos em busca de uma bela princesa a quem pudesse amar. Ao final de sua
vida, porém, tudo o que o belo Príncipe havia amado foram as histórias e as
glórias que elas prometiam: nenhuma princesa ao final de sua jornada lhe
encantava.
O amor do Príncipe
nunca fora além das lendas: o amor do Príncipe, depois que vencia sua jornada, de
nada valia, pois o que ele amava verdadeiramente era a aventura, e jamais o seu
objetivo. O amor dum príncipe que, quando acordava a princesa, percebia que nunca
a amara verdadeiramente: ele também acordaria de seus devaneios.
Alaric, por sua
vez, foi Príncipe por alguns anos: não durou muito, e ele fugiu daquela
Princesa enfadonha e mimada, bem como de todo aquele reino bajulador. Com a
ajuda de um fiel servo, que passou a ser seu fiel amigo, Alaric forjou a
própria morte na floresta e fugiu para nunca mais voltar, entregue novamente à
estrada e às histórias.
E essa, caros
leitores, é a verdadeira história de Briar-Rose, ou a Bela Adormecida na
Floresta, ou simplesmente Bela Adormecida, como queira intitulá-la. O fato é, o
Príncipe, depois que se desencantou, partiu para outras aventuras... Mas essa é
outra história.
E aqui contei um
conto, que espero fazer sorrir,
E se alguém quer
contar melhor, vai ter é que mentir.
~ fim ~