Prelúdio
“Circunavegando as nuvens do céu”.
Era quase meia-noite,
mas isso não parecia fazer a mínima diferença para o homem debruçado sobre a
mesa. Ali, no escuro, tendo como única fonte de luz um abajur sem revestimento,
ele franzia o cenho enquanto escrevia fervorosamente num papel. A letra saía
corrida, determinada e ilegível, mas o autor daquelas palavras parecia conseguir
distinguir com perfeição o significado de cada mínima letrinha. Mais outras centenas
(se não milhares) de papéis estavam espalhados pela enorme mesa de madeira,
agrupados numa ordem discutível, mas clara para quem havia organizado-os.
Dentre os incontáveis papéis rabiscados com a mesma letra corrida, havia
desenhos a lápis aquarelados, muitos dos quais incompletos, ou tão
absolutamente abstratos que era difícil descobrir o que exatamente era.
Às vezes, o homem calvo
parava de escrever, bebia numa caneca próxima ao seu cotovelo e consultava dois
ou três desenhos. Então, passava a língua pelos lábios e inclinava-se novamente
sobre o papel no qual trabalhava. Estava ali desde as seis horas da noite, e
parecia que não sairia nem tão cedo. Seu telefone antiquado estava fora do
gancho e ao lado dele, os peixes no aquário eram as únicas testemunhas do
trabalho fervoroso do velho.
Peixes, aliás, era um tema freqüente nos desenhos do velho calvo, e só
não apareciam com tanta freqüência quanto os ramos sinuosos de trepadeiras e a
folhagem misteriosa e sombria de árvores tropicais. Havia, porém, uma vasta
coleção: araras, pessoas, barcos, trens, macacos, oceanos, casas em meio a
florestas, cadeiras de balanço, crianças. Crianças com peixes. Inúmeras
crianças com peixes, como também crianças em cima de árvores, dormindo, lendo,
caminhando - correndo por planícies vazias. Mas também havia misteriosas
florestas, apenas um emaranhado de formas silvestres, que nem um observador
atento conseguiria distinguir todas elas.
O relógio na parede da
sala anunciou meia-noite. Ele levantou a cabeça por um instante e fitou os
ponteiros. Meia-noite, lá estava. Mas logo desviou os olhos e deu um gole na
caneca ao seu lado. Vazia. Ele grunhiu, cansado, e levantou-se para enchê-la de
novo.
A sala era um aposento
amplo e cáqui. A grande mesa de madeira estava no centro dela, longe da janela
entreaberta que deixava um vento noturno penetrar o ambiente, fazendo as folhas
na mesa tremularem como se tivessem vida. Próxima à janela, uma pequena cômoda
de madeira escura repleta de gavetas sustentava um vaso solitário, e pregadas
na parede acima da cômoda, várias fotografias – umas antigas, amareladas,
outras mais modernas, de cores desbotadas, e finalmente as mais recentes,
definidas e brilhantes. Na parede oposta à janela, a porta estava fechada à
chave, e quando um vento mais forte batia, fazia-a ranger. No umbral, um
pequeno sino estava pendurado. Longe da porta, um barzinho modesto expunha
garrafas e mais garrafas de whisky, vinhos, vodkas e licores, dispostos sobre
uma toalha de linho bordada, certamente um capricho deixado pela mulher do
velho calvo antes de morrer.
Com passos vagarosos e arrastados, o homem atravessou a sala neutra até o
pequeno barzinho feito de madeira de lei. Ali, depositou a caneca no balcão e
procurou por uma garrafa. Era de tamanho médio, transparente e sem rótulo. Uma
rolha estraçalhada estava na boca da garrafa. Ele retirou-a com movimentos
lentos, e fez o líquido transparente jorrar para a caneca. Mas, quando ele
levantou-a para beber, nenhuma gota veio ao encontro de sua língua.
O homem tremeu e arregalou os olhos para caneca, e num momento de
nervosismo puro, deixou-a se espatifar no chão, espalhando cacos de cerâmica
por todos os lados. Seu tempo havia acabado e ele sabia disso. Estava por um
fio.
“Lar, onde todos querem estar”.
Ele cambaleou até a mesa repleta de papéis de ofício e jogou-se na
cadeira, fazendo-a gemer sob o peso ao qual havia sido obrigada a suportar. Apesar
do vento fresco que batia nas janelas, o velho calvo suava frio diante dos
papéis nos quais trabalhara por tantos anos. Havia muito tempo não fazia outra
coisa além de escrever e desenhar aquilo e agora, repentinamente, sentiu o peso
de todos esses anos em suas costas, tal qual a cadeira sentira o peso de seu
ocupante quando ele se jogou sobre ela. Mas diferentemente da cadeira, ele
sentia que ia quebrar, e não apenas soltar lamúrias silenciosas. Tanto tempo
havia se passado desde o último dia de sua vida, que ele mal podia se lembrar
dele. Estava completamente absorvido com seu trabalho de detalhar e relatar as
histórias das quais ouvira falar.
Agora, suando frio e
tremendo como estava, duvidava se conseguiria terminar tudo aquilo. Mas ele
ainda tinha algum tempo. Tinha que aproveitá-lo o máximo possível.
Ignorando completamente
os cacos de cerâmica que um dia foram a caneca vermelha, ele voltou a escrever
freneticamente, mas agora com mais urgência ainda. Costumava usar uma máquina
de escrever antiga, mas ela havia quebrado há uma semana, e ele não tinha tempo
para levá-la para consertar, de forma que passara a escrever tudo a mão. É
claro que esse processo só o deixou com uma terrível tendinite e uns quantos
papéis com letras ilegíveis, mas pelo menos ele estava escrevendo.
“Atravessando todos os oceanos,
como queriam os que continuam sonhando”.
Ficou ali, debruçado
sobre seus papéis, o resto da noite inteira. E quando a manhã chegou, varrendo
os ventos e uivos noturnos e trazendo pássaros e raios de sol, ele recebeu uma
visita. Nenhum vizinho ou carteiro ou bêbado chegou a ver a tal visita, pois
aquela não era uma visita qualquer, de fato. Era uma visita silenciosa,
discreta e inevitável.
O velho calvo não lhe
abriu a porta ou a janela, ela chegou por conta própria e foi embora levando o que
lhe pertencia, mesmo sob os protestos desesperados do dono da casa.
Naquela manhã de 13 de janeiro
de ano irrelevante, José Benário dos Anjos morreu de um ataque fulminante do
coração. O que as pessoas só iriam notar na hora de preparar seu enterro, era
que no dia anterior à sua morte ele havia completado 77 anos. E nem ele próprio
lembrara disso.