Relato de um momento na juventude do Senhor José Benário dos Anjos, sucedido, então, de seu
momento derradeiro
Ele sempre imaginou
histórias fantasiosas
para todas as pequenas
coisas que o cercavam.
Uma panela que caía,
uma lagartixa que via
no quintal, uma curiosa
mancha na parede. Tudo
era motivo para uma
história fantástica.
Ele tinha o privilégio
de morar numa casa
velha, numa rua tranqüila,
e por isso mesmo
vivia cercado de pequenos
e misteriosos ruídos.
Esses ruídos eram, de
fato, fontes da maior
inspiração para ele,
mais até do que as
coisas curiosas que via.
Sendo um solteirão
convicto e anti-social,
evitava trazer visitas
à casa, e logo
esses ruídos eram muitas
vezes sua única companhia
– à exceção do rádio,
é claro.
Alguns desses barulhos
lhe eram extremamente
familiares – o apitar
da chaleira, o ranger
do portão da frente,
o vento que deixava
em alvoroço a mangueira
e a acácia no
seu quintal. Esses barulhos
mais rotineiros faziam parte
da mitologia da sua
principal história,
aquela que ele desenrolava
em sua mente dia
após dia, acrescentando
pequenos detalhes e
risos à medida que
pensava nela. Era
seu pequeno mundo de
fantasia, onde ele
era o único a
ter passe livre e
controle total sobre
todas as tramas e
coisas e pessoas e
elementos.
É por isso
que ele gostava tanto
do mês de agosto
– ventava que era
uma delícia! Assim, lhe
dava ainda mais sons
da casa para ouvir
e inventar outras tantas
histórias.
No último ano,
porém, ele não havia
conseguido pensar em
nada direito. Nada que
valesse a pena
mesmo. Estava decepcionado
consigo mesmo, e
passou todos aqueles longos
meses taciturno e quieto,
e todos ao seu
redor haviam percebido
a mudança. Havia sido
acometido daquele terrível
bloqueio criativo que,
uma hora ou outra,
pega todo mundo. Mas
ele não esperava que
durasse tanto tempo
assim.
Chorava, às vezes.
De angústia. E nessas
horas, fumava feito uma
chaminé. Mas uma
tarde de agosto, depois
de quase um ano
sem escrever ou pensar
em nada, ele ouviu.
A porta que batia.
A porta do quarto
que usava só para
guardar tralhas.
BAM!
Três dias atrás
a tartaruga de areia
que segurava a porta
havia se rasgado, e
desde então que ela
rangia em seu eixo.
Mas três dias atrás
não havia o vento
que havia naquele dia
de agosto.
BAM!
O barulho que
indicava um mundo novo.
Tudo veio à tona
então, no tempo de
um único BAM!, como uma
tempestade que se
forma inesperada e rapidamente
sobre o mar tranqüilo.
Ele largou a
caneca de chá quente
na mesa da cozinha
sem nem pensar duas
vezes, e saiu correndo
para seu quarto.
BAM!
Passou voando em
frente à porta que
balançava em seu
eixo, e ao olhar
dentro daquele quarto viu,
por um segundo, algo
mais do que simples
tralhas acumuladas
ao longo dos anos.
Viu vários pares de
olhos negros e curiosos
encarando-o, indagando-o:
"o que fazemos
aqui, José? O que
fazemos aqui?".
E ele queria
respondê-los o mais
rápido possível, era por
isso que corria por
papel e caneta – o
diabo daquela máquina de escrever havia
quebrado de novo.
É por isso que
ele não confiava em
tecnologia.
Chegando a seu
quarto, agarrou o
caderno e sentou-se
no chão, apoiando as
costas contra a cama.
E escreveu.
Escreveu, escreveu e
escreveu.
E escreveu mais
um pouco.
Passou aquela tarde
inteira escrevendo.
O sol se pôs
e seu punho doía
de tanto escrever.
Pronto.
Sua inspiração
havia voltado.
– Parabéns,
Carlos.
Ele baixou a
cabeça e suspirou.
Era um alívio. Ficou
em silêncio por longos
minutos então, apenas
ouvindo o som
de sua própria respiração.
Um longo silêncio...
Que não condizia
com o mês de
agosto.
Onde estava sua
porta que rangia? Onde
estavam as folhas
das árvores balançando
contra o vento? E
as janelas que brincavam
com a luz do
sol, dando-lhe cores novas?
Onde estava seu pequeno
mundo de barulhos e
formas que só ele
percebia?
Nem o som
do mundo lá fora
ele ouvia... Rangido de
carrinho de mão,
latido do cachorro do
vizinho, passarinhos,
meninos gritando...
Nada...
E esse foi
o momento em que
as coisas se revelaram
para ele, e mudaram
sua vida para sempre.
Esse foi
o momento em que
ele viu tudo o
que ele sempre quis
ver... e em troca dessa
visão, ele teve que
dar sua vida.
A posteridade conheceria seus livros sob o título “Antologia
do Papel Pardo de Sete Sonhos”, mas ele... Ele não chegaria a conhecê-los
assim. Para sua infelicidade, sua mente criativa encontrara o que tanto havia
buscado, mas a felicidade não estava entre os espólios dessa busca. Não, o
autor daquelas histórias não viveria tempo suficiente para dar-lhes um título
mais apropriado, e caberia a outrem essa missão.
Mas essa, meu caro leitor, é uma outra história.
Não me entenda mal – o fim desse ilustre senhor só chegaria
cinquenta e três anos depois, mas esses cinquenta e três anos não seriam, de
forma alguma, bem vividos. Afinal, ele abriu mão de sua vida para ter a
privilégio de espiar para além do que os olhos veem, e não havia tempo – nem
mesmo cinquenta e três anos – que pudessem apagar tal visão de sua memória.
Naquela tarde derradeira, quando ele ouviu a porta bater, ele
escreveu uma pequena crônica sobre portas que levavam para além de um pequeno
cômodo, e de olhos negros e grandes a observar a personagem principal, alheia a
tudo aquilo.
Seria uma belíssima, inspiradora crônica, ao contrário das
últimas frases que escreveria pouco antes de morrer – incoerentes, beirando à
loucura.
Começaria assim: “Circunavegando
as nuvens do céu”.
Seria quase meia-noite, mas isso não parecia fazer a
mínima diferença para o homem debruçado sobre a mesa. Ali, no escuro, tendo
como única fonte de luz um abajur sem revestimento, ele franzia o cenho enquanto
escrevia fervorosamente num papel. A letra saía corrida, determinada e
ilegível, mas o autor daquelas palavras parecia conseguir distinguir com
perfeição o significado de cada mínima letrinha. Mais outras centenas (se não
milhares) de papéis estavam espalhados pela enorme mesa de madeira, agrupados
numa ordem discutível, mas clara para quem havia organizado-os. Dentre os
incontáveis papéis rabiscados com a mesma letra corrida, havia desenhos a lápis
aquarelados, muitos dos quais incompletos, ou tão absolutamente abstratos que
era difícil descobrir o que exatamente era.
Às vezes, o homem calvo parava de escrever, bebia numa
caneca próxima ao seu cotovelo e consultava dois ou três desenhos. Então,
passava a língua pelos lábios e inclinava-se novamente sobre o papel no qual
trabalhava. Estava ali desde as seis horas da noite, e parecia que não sairia
nem tão cedo. Seu telefone antiquado estava fora do gancho e ao lado dele, os
peixes no aquário eram as únicas testemunhas do trabalho fervoroso do velho.
Peixes, aliás, era um tema freqüente nos desenhos do
velho calvo, e só não apareciam com tanta freqüência quanto os ramos sinuosos
de trepadeiras e a folhagem misteriosa e sombria de árvores tropicais. Havia,
porém, uma vasta coleção: araras, pessoas, barcos, trens, macacos,
oceanos, casas em meio a florestas, cadeiras de balanço, crianças.
Crianças com peixes. Inúmeras crianças com peixes, como também crianças em cima
de árvores, dormindo, lendo, caminhando - correndo por planícies vazias. Mas
também havia misteriosas florestas, apenas um emaranhado de formas silvestres,
e nem um observador atento conseguiria distinguir todas elas.
O relógio na parede da sala anunciou meia-noite. Ele
levantou a cabeça por um instante e fitou os ponteiros. Meia-noite, lá estava.
Mas logo desviou os olhos e deu um gole na caneca ao seu lado. Vazia. Ele
grunhiu, cansado, e levantou-se para enchê-la de novo.
A sala era um aposento amplo e cáqui. A grande mesa de
madeira estava no centro dela, longe da janela entreaberta que deixava um vento
noturno penetrar o ambiente, fazendo as folhas na mesa tremularem como se
tivessem vida. Próxima à janela, uma pequena cômoda de madeira escura repleta
de gavetas sustentava um vaso solitário, e pregadas na parede acima da cômoda,
várias fotografias – umas antigas, amareladas, outras mais modernas, de cores
desbotadas, e finalmente as mais recentes, definidas e brilhantes. Na parede
oposta à janela, a porta estava fechada à chave, e quando um vento mais forte
batia, fazia-a ranger. No umbral, um pequeno sino estava pendurado. Longe da
porta, um barzinho modesto expunha garrafas e mais garrafas de whisky, vinhos,
vodkas e licores, dispostos sobre uma toalha de linho bordada, certamente um
capricho deixado pela mulher do velho calvo antes de morrer.
Com passos vagarosos e arrastados, o homem atravessou
a sala neutra até o pequeno barzinho feito de madeira de lei. Ali, depositou a
caneca no balcão e procurou por uma garrafa. Era de tamanho médio, transparente
e sem rótulo. Uma rolha estraçalhada estava na boca da garrafa. Ele retirou-a
com movimentos lentos, e fez o líquido transparente jorrar para a caneca. Mas,
quando ele levantou-a para beber, nenhuma gota veio ao encontro de sua língua.
O homem tremeu e arregalou os olhos para caneca, e num
momento de nervosismo puro, deixou-a se espatifar no chão, espalhando cacos de
cerâmica por todos os lados. Seu tempo havia acabado e ele sabia disso. Estava
por um fio.
“Lar, onde todos
querem estar”.
Ele cambaleou até a mesa repleta de papéis de ofício e
jogou-se na cadeira, fazendo-a gemer sob o peso ao qual havia sido obrigada a
suportar. Apesar do vento fresco que batia nas janelas, o velho calvo suava
frio diante dos papéis nos quais trabalhara por tantos anos. Havia muito tempo
não fazia outra coisa além de escrever e desenhar aquilo e agora,
repentinamente, sentiu o peso de todos esses anos em suas costas, tal qual a
cadeira sentira o peso de seu ocupante quando ele se jogou sobre ela. Mas
diferentemente da cadeira, ele sentia que ia quebrar, e não apenas soltar
lamúrias silenciosas. Tanto tempo havia se passado desde o último dia de sua
vida, que ele mal podia se lembrar dele. Estava completamente absorvido com seu
trabalho de detalhar e relatar as histórias das quais ouvira falar.
Agora, suando frio e tremendo como estava, duvidava se
conseguiria terminar tudo aquilo. Mas ele ainda tinha algum tempo. Tinha que
aproveitá-lo o máximo possível.
Ignorando completamente os cacos de cerâmica que um
dia foram a caneca vermelha, ele voltou a escrever freneticamente, mas agora
com mais urgência ainda. Costumava usar uma máquina de escrever antiga, mas ela
havia quebrado há uma semana, e ele não tinha tempo para levá-la para
consertar, de forma que passara a escrever tudo a mão. É claro que esse
processo só o deixou com uma terrível tendinite e uns quantos papéis com letras
ilegíveis, mas pelo menos ele estava escrevendo.
“Atravessando
todos os oceanos, como queriam os que continuam sonhando”.
Ficou ali, debruçado sobre seus papéis, o resto da
noite inteira, trabalhando initerruptamente. Foi apenas pouco antes da alvorada
que ele ouviu.
BAM!
Inadvertidamente, e contra todas as probabilidades, a
porta do quarto de tralhas, que ele havia pregado à parede anos atrás,
começou a bater.
BAM!
O velho gelou. Da última vez que havia ouvido aquela
porta batendo, havia deixado sua vida de lado.
E quando a manhã chegou, varrendo os ventos e uivos
noturnos e trazendo pássaros e raios de sol, ele recebeu uma visita. Nenhum
vizinho ou carteiro ou bêbado chegou a ver a tal visita, pois aquela não era
uma visita qualquer, de fato. Era uma visita silenciosa, discreta e inevitável.
Até mesmo a porta parou de bater para não irritar o visitante matutino.
O velho calvo não lhe abriu a porta ou a janela, ela
chegou por conta própria e foi embora levando o que lhe pertencia, mesmo sob os
protestos desesperados do dono da casa.
Naquela manhã de 13 de janeiro de ano irrelevante,
José Benário dos Anjos morreu de um derrame cerebral imprevisível em todos os
exames médicos que já havia feito. O que as pessoas só iriam notar na hora de
preparar seu enterro, era que no dia anterior à sua morte ele havia completado
77 anos. E nem ele próprio lembrara disso.
A porta de sua casa não voltaria a bater.
De fato, assim que um parente distante tomou posse da
casa, fez questão de vendê-la para uma grande construtora, que colocou-a abaixo
rapidamente e construiu um belo prédio, com apartamentos de luxo, no lugar.
Aquela casa, assim como seu ocupante, havia deixado de
existir.
A porta não bateria mais – e ninguém mais escreveria
sobre aquelas assombrosas histórias também.