Últimmas Folhas

7 de novembro de 2013

A Porta


Relato de um momento na juventude do Senhor José Benário dos Anjos, sucedido, então, de seu momento derradeiro


Ele sempre imaginou histórias fantasiosas para todas as pequenas coisas que o cercavam. Uma panela que caía, uma lagartixa que via no quintal, uma curiosa mancha na parede. Tudo era motivo para uma história fantástica. Ele tinha o privilégio de morar numa casa velha, numa rua tranqüila, e por isso mesmo vivia cercado de pequenos e misteriosos ruídos. Esses ruídos eram, de fato, fontes da maior inspiração para ele, mais até do que as coisas curiosas que via. Sendo um solteirão convicto e anti-social, evitava trazer visitas à casa, e logo esses ruídos eram muitas vezes sua única companhiaà exceção do rádio, é claro.
Alguns desses barulhos lhe eram extremamente familiareso apitar da chaleira, o ranger do portão da frente, o vento que deixava em alvoroço a mangueira e a acácia no seu quintal. Esses barulhos mais rotineiros faziam parte da mitologia da sua principal história, aquela que ele desenrolava em sua mente dia após dia, acrescentando pequenos detalhes e risos à medida que pensava nela. Era seu pequeno mundo de fantasia, onde ele era o único a ter passe livre e controle total sobre todas as tramas e coisas e pessoas e elementos.
É por isso que ele gostava tanto do mês de agostoventava que era uma delícia! Assim, lhe dava ainda mais sons da casa para ouvir e inventar outras tantas histórias.
No último ano, porém, ele não havia conseguido pensar em nada direito. Nada que valesse a pena mesmo. Estava decepcionado consigo mesmo, e passou todos aqueles longos meses taciturno e quieto, e todos ao seu redor haviam percebido a mudança. Havia sido acometido daquele terrível bloqueio criativo que, uma hora ou outra, pega todo mundo. Mas ele não esperava que durasse tanto tempo assim.
Chorava, às vezes. De angústia. E nessas horas, fumava feito uma chaminé. Mas uma tarde de agosto, depois de quase um ano sem escrever ou pensar em nada, ele ouviu. A porta que batia. A porta do quarto que usava para guardar tralhas.
BAM!
Três dias atrás a tartaruga de areia que segurava a porta havia se rasgado, e desde então que ela rangia em seu eixo. Mas três dias atrás não havia o vento que havia naquele dia de agosto.
BAM!
Um barulho novo.

 
O barulho que indicava um mundo novo. Tudo veio à tona então, no tempo de um único BAM!, como uma tempestade que se forma inesperada e rapidamente sobre o mar tranqüilo.
Ele largou a caneca de chá quente na mesa da cozinha sem nem pensar duas vezes, e saiu correndo para seu quarto.
BAM!
Passou voando em frente à porta que balançava em seu eixo, e ao olhar dentro daquele quarto viu, por um segundo, algo mais do que simples tralhas acumuladas ao longo dos anos. Viu vários pares de olhos negros e curiosos encarando-o, indagando-o: "o que fazemos aqui, José? O que fazemos aqui?".
E ele queria respondê-los o mais rápido possível, era por isso que corria por papel e canetao diabo daquela máquina de escrever havia quebrado de novo. É por isso que ele não confiava em tecnologia.
Chegando a seu quarto, agarrou o caderno e sentou-se no chão, apoiando as costas contra a cama.
E escreveu.
Escreveu, escreveu e escreveu.
E escreveu mais um pouco.
Passou aquela tarde inteira escrevendo. O sol se pôs e seu punho doía de tanto escrever.
Pronto.
Sua inspiração havia voltado.
Parabéns, Carlos.
Ele baixou a cabeça e suspirou. Era um alívio. Ficou em silêncio por longos minutos então, apenas ouvindo o som de sua própria respiração.
Um longo silêncio...
Que não condizia com o mês de agosto.
Onde estava sua porta que rangia? Onde estavam as folhas das árvores balançando contra o vento? E as janelas que brincavam com a luz do sol, dando-lhe cores novas? Onde estava seu pequeno mundo de barulhos e formas que ele percebia?
Nem o som do mundo fora ele ouvia... Rangido de carrinho de mão, latido do cachorro do vizinho, passarinhos, meninos gritando... Nada...
E esse foi o momento em que as coisas se revelaram para ele, e mudaram sua vida para sempre. Esse foi o momento em que ele viu tudo o que ele sempre quis ver... e em  troca dessa visão, ele teve que dar sua vida.
A posteridade conheceria seus livros sob o título “Antologia do Papel Pardo de Sete Sonhos”, mas ele... Ele não chegaria a conhecê-los assim. Para sua infelicidade, sua mente criativa encontrara o que tanto havia buscado, mas a felicidade não estava entre os espólios dessa busca. Não, o autor daquelas histórias não viveria tempo suficiente para dar-lhes um título mais apropriado, e caberia a outrem essa missão.
Mas essa, meu caro leitor, é uma outra história.
Não me entenda mal – o fim desse ilustre senhor só chegaria cinquenta e três anos depois, mas esses cinquenta e três anos não seriam, de forma alguma, bem vividos. Afinal, ele abriu mão de sua vida para ter a privilégio de espiar para além do que os olhos veem, e não havia tempo – nem mesmo cinquenta e três anos – que pudessem apagar tal visão de sua memória.
Naquela tarde derradeira, quando ele ouviu a porta bater, ele escreveu uma pequena crônica sobre portas que levavam para além de um pequeno cômodo, e de olhos negros e grandes a observar a personagem principal, alheia a tudo aquilo.
Seria uma belíssima, inspiradora crônica, ao contrário das últimas frases que escreveria pouco antes de morrer – incoerentes, beirando à loucura.
Começaria assim: “Circunavegando as nuvens do céu”.
Seria quase meia-noite, mas isso não parecia fazer a mínima diferença para o homem debruçado sobre a mesa. Ali, no escuro, tendo como única fonte de luz um abajur sem revestimento, ele franzia o cenho enquanto escrevia fervorosamente num papel. A letra saía corrida, determinada e ilegível, mas o autor daquelas palavras parecia conseguir distinguir com perfeição o significado de cada mínima letrinha. Mais outras centenas (se não milhares) de papéis estavam espalhados pela enorme mesa de madeira, agrupados numa ordem discutível, mas clara para quem havia organizado-os. Dentre os incontáveis papéis rabiscados com a mesma letra corrida, havia desenhos a lápis aquarelados, muitos dos quais incompletos, ou tão absolutamente abstratos que era difícil descobrir o que exatamente era.
Às vezes, o homem calvo parava de escrever, bebia numa caneca próxima ao seu cotovelo e consultava dois ou três desenhos. Então, passava a língua pelos lábios e inclinava-se novamente sobre o papel no qual trabalhava. Estava ali desde as seis horas da noite, e parecia que não sairia nem tão cedo. Seu telefone antiquado estava fora do gancho e ao lado dele, os peixes no aquário eram as únicas testemunhas do trabalho fervoroso do velho.
Peixes, aliás, era um tema freqüente nos desenhos do velho calvo, e só não apareciam com tanta freqüência quanto os ramos sinuosos de trepadeiras e a folhagem misteriosa e sombria de árvores tropicais. Havia, porém, uma vasta coleção: araras, pessoas, barcos, trens, macacos, oceanos, casas em meio a florestas, cadeiras de balanço, crianças. Crianças com peixes. Inúmeras crianças com peixes, como também crianças em cima de árvores, dormindo, lendo, caminhando - correndo por planícies vazias. Mas também havia misteriosas florestas, apenas um emaranhado de formas silvestres, e nem um observador atento conseguiria distinguir todas elas.
O relógio na parede da sala anunciou meia-noite. Ele levantou a cabeça por um instante e fitou os ponteiros. Meia-noite, lá estava. Mas logo desviou os olhos e deu um gole na caneca ao seu lado. Vazia. Ele grunhiu, cansado, e levantou-se para enchê-la de novo.
A sala era um aposento amplo e cáqui. A grande mesa de madeira estava no centro dela, longe da janela entreaberta que deixava um vento noturno penetrar o ambiente, fazendo as folhas na mesa tremularem como se tivessem vida. Próxima à janela, uma pequena cômoda de madeira escura repleta de gavetas sustentava um vaso solitário, e pregadas na parede acima da cômoda, várias fotografias – umas antigas, amareladas, outras mais modernas, de cores desbotadas, e finalmente as mais recentes, definidas e brilhantes. Na parede oposta à janela, a porta estava fechada à chave, e quando um vento mais forte batia, fazia-a ranger. No umbral, um pequeno sino estava pendurado. Longe da porta, um barzinho modesto expunha garrafas e mais garrafas de whisky, vinhos, vodkas e licores, dispostos sobre uma toalha de linho bordada, certamente um capricho deixado pela mulher do velho calvo antes de morrer.
Com passos vagarosos e arrastados, o homem atravessou a sala neutra até o pequeno barzinho feito de madeira de lei. Ali, depositou a caneca no balcão e procurou por uma garrafa. Era de tamanho médio, transparente e sem rótulo. Uma rolha estraçalhada estava na boca da garrafa. Ele retirou-a com movimentos lentos, e fez o líquido transparente jorrar para a caneca. Mas, quando ele levantou-a para beber, nenhuma gota veio ao encontro de sua língua.
O homem tremeu e arregalou os olhos para caneca, e num momento de nervosismo puro, deixou-a se espatifar no chão, espalhando cacos de cerâmica por todos os lados. Seu tempo havia acabado e ele sabia disso. Estava por um fio.
“Lar, onde todos querem estar”.
Ele cambaleou até a mesa repleta de papéis de ofício e jogou-se na cadeira, fazendo-a gemer sob o peso ao qual havia sido obrigada a suportar. Apesar do vento fresco que batia nas janelas, o velho calvo suava frio diante dos papéis nos quais trabalhara por tantos anos. Havia muito tempo não fazia outra coisa além de escrever e desenhar aquilo e agora, repentinamente, sentiu o peso de todos esses anos em suas costas, tal qual a cadeira sentira o peso de seu ocupante quando ele se jogou sobre ela. Mas diferentemente da cadeira, ele sentia que ia quebrar, e não apenas soltar lamúrias silenciosas. Tanto tempo havia se passado desde o último dia de sua vida, que ele mal podia se lembrar dele. Estava completamente absorvido com seu trabalho de detalhar e relatar as histórias das quais ouvira falar.
Agora, suando frio e tremendo como estava, duvidava se conseguiria terminar tudo aquilo. Mas ele ainda tinha algum tempo. Tinha que aproveitá-lo o máximo possível.
Ignorando completamente os cacos de cerâmica que um dia foram a caneca vermelha, ele voltou a escrever freneticamente, mas agora com mais urgência ainda. Costumava usar uma máquina de escrever antiga, mas ela havia quebrado há uma semana, e ele não tinha tempo para levá-la para consertar, de forma que passara a escrever tudo a mão. É claro que esse processo só o deixou com uma terrível tendinite e uns quantos papéis com letras ilegíveis, mas pelo menos ele estava escrevendo.
“Atravessando todos os oceanos, como queriam os que continuam sonhando”.
Ficou ali, debruçado sobre seus papéis, o resto da noite inteira, trabalhando initerruptamente. Foi apenas pouco antes da alvorada que ele ouviu.
BAM!
Inadvertidamente, e contra todas as probabilidades, a porta do quarto de tralhas, que ele havia pregado à parede anos atrás, começou a bater.
BAM!
O velho gelou. Da última vez que havia ouvido aquela porta batendo, havia deixado sua vida de lado.
E quando a manhã chegou, varrendo os ventos e uivos noturnos e trazendo pássaros e raios de sol, ele recebeu uma visita. Nenhum vizinho ou carteiro ou bêbado chegou a ver a tal visita, pois aquela não era uma visita qualquer, de fato. Era uma visita silenciosa, discreta e inevitável. Até mesmo a porta parou de bater para não irritar o visitante matutino.
O velho calvo não lhe abriu a porta ou a janela, ela chegou por conta própria e foi embora levando o que lhe pertencia, mesmo sob os protestos desesperados do dono da casa.
Naquela manhã de 13 de janeiro de ano irrelevante, José Benário dos Anjos morreu de um derrame cerebral imprevisível em todos os exames médicos que já havia feito. O que as pessoas só iriam notar na hora de preparar seu enterro, era que no dia anterior à sua morte ele havia completado 77 anos. E nem ele próprio lembrara disso.
A porta de sua casa não voltaria a bater.
De fato, assim que um parente distante tomou posse da casa, fez questão de vendê-la para uma grande construtora, que colocou-a abaixo rapidamente e construiu um belo prédio, com apartamentos de luxo, no lugar.
Aquela casa, assim como seu ocupante, havia deixado de existir.
A porta não bateria mais – e ninguém mais escreveria sobre aquelas assombrosas histórias também.