Tia Carochinha está uma fera hoje.
Há duas semanas foi seu aniversário de... bem, não sei
quantos anos, mas sei que foi seu aniversário. E eu, como toda boa sobrinha
(sobrinha-neta? Sobrinha-bisneta?), lhe comprei um presente. Ela é uma senhora
velha e antiquada, apesar de seus surtos revolucionários, e eu, na minha
inocente tentativa de agradá-la, lhe comprei um antigo relógio de pêndulo que
encontrei numa relojoaria no centro da cidade. Foi um presente até bastante
caro, diga-se de passagem. Jacarandá nunca é barato, mesmo. Tive que tirar
dinheiro do meu porquinho (que por sinal, foi um presente dela – demorei três
meses pra descobrir como é que se colocavam moedas lá dentro, e pelo menos
quatro tentando achar um jeito de tirá-las).
Eu nunca vi um relógio na casa de tia Carochinha, de
forma que achei que ela ficaria feliz em ganhar um tão bonito quanto aquele que
lhe comprei.
Ledo engano.
Diz ela que o relógio de parede não pára de tocar e
resmungar, e que seus gatos só vivem a reclamar do velho pêndulo, que fica pra
lá e pra cá. Sete gatos já ficaram hipnotizados, e os outros três que sobraram
– Faísca, Holho-Tonto, e Kekulé – estão indignados, pois também temem o relógio
que só sabe tiquetaquear as horas que passam.
Eu já tentei explicar à tia Carochinha que essa é, na
verdade, a real função do relógio, contar as horas passando. Mas ela parece não
poder conceber essa ideia, pois sempre me ameaça com a colher de pau, dizendo
que terei que passar cem anos cozinhando pra ela se eu repetir "outra
dessas infâmias". E eu já estou condicionada a me encolher toda vez que
ela levanta aquela maldita colher de pau.
Eu sabia que ela nunca havia tido um relógio em casa... Só não sabia
que ela desconhecia completamente sua
função. Tia Carochinha nunca para de me surpreender.
Mandou-me levar Freud e Lelé para o veterinário, que
foram os últimos gatos hipnotizados pelo tic-tac. Quando digo o que
aconteceu, o doutor pós-graduado ri de mim e diz que isso não existe. Então
trato de rir também e dizer que estava brincando, e que na verdade os gatos
haviam ficados catatônicos por um choque qualquer.
Daí ele aceita minha mentira e trata dos bichanos.
Sinceramente, não entendo por que as pessoas preferem ouvir uma mentira
plausível ("palmas!", diria tia Carochinha) a uma verdade improvável.
Agora eu estou soando como a tia Carochinha. Deus me
proteja.
Depois de um exame minucioso de incríveis cinco
minutos, o médico de bichos deu seu diagnóstico mais que preciso:
– Não tenho idéia de como acordá-los.
Ele parecia quase tão catatônico quanto os próprios
gatos.
– Espere só até tia Carochinha ouvir isso... Sempre
sobra pra mim – quando eu digo ninguém acredita, mas é a pura verdade. Desde
meus oito anos é assim, e parece que assim será sempre.
Eu, já prevendo tal resposta, coloquei os dois gatos
catatônicos de volta na sacola de feira, e dirigi-me para a casa sem número da
Rua Velha (carinhosamente chamada “rua da
Velha” em homenagem à titia).
Honestamente, esperava uma recepção mais brusca do que
realmente houve quando eu entrei e depositei a sacola com Freud e Lelé na mesa.
Ela apenas bradou aos quatro ventos impropérios de como eu era uma “menina
desmiolada que não sabe o que traz pra dentro de casa”. Eu nem sequer recebi
colhadadas na cabeça! Mas eu sabia que estava adiando o inevitável.
Ao mencionar o grande diagnóstico do veterinário,
levei uma enxurrada de xingamentos que nem sequer eram dirigidos a mim – tive
que ouvir tia Carochinha xingando a mãe, o pai e até os dedões do pé do
veterinário. E depois recebi umas colhadadas.
Típico.
Agora eu
pergunto: que culpa tenho eu de que os gatos de tia Carochinha ficaram
catatônicos com o tic-tac do relógio? E eu respondo: nenhuma! Todos
olhamos para relógios e não ficamos catatônicos! E ela ainda não aceitou o fato
de que o relógio conta as horas que passam. Não vou insistir. Simplesmente não
vou. Bem sei que não adianta.
Despedi-me de tia Carochinha, desviei de uma
frigideirada que ela queria acertar em uma mosca na parede (ela é meio míope) e
fui para o quintal da casa, a fim de discutir seriamente com Kekulé,
Holho-Tonto e Faísca.
Havia dois dias que eles não entravam na casa com medo
do tic-tac do relógio de pêndulo. E ainda por cima não entendiam porque
eu não queria que ele fosse jogado fora:
– Ora essas, para encontrarmos a cura, temos que
pesquisar a doença!
Essa frase sempre soa sábia e correta na minha cabeça,
mas os gatos não compartilhavam comigo esse sentimento de sapiência. Saí sem
muita animação, pois simplesmente não consegui convencer a ninguém – nem mesmo
aos meus sapatos – que tudo se resolveria.
*
No outro dia, fui acordada por três anuns fazendo um
escarcéu na minha janela. Não consegui dar uma desculpa plausível a meus pais
nem às minhas irmãs, e tive que sair às cinco da matina em pleno domingo para a
casa de tia Carochinha, porque quando ela envia seus anuns pretos e
mal-humorados a coisa é séria. Da última fez que ignorei seu chamado, acordei
enterrada num mangue – como eu parei lá, ainda é um mistério.
Quando finalmente cheguei à casa de tia Carochinha, só
pude pensar uma coisa: danou-se tudo. Finalmente pirou. Além dos animais
estranhos, dos ingredientes suspeitos nos bolos e do eterno vestido preto de
bolinhas brancas, havia um triturador de carne gigante no telhado da
casa!
Entrei
desesperada: ela vai triturar os gatos catatônicos! Vai transformá-los em
tortinhas! Freud! Lelé! Beirute! Marie Curie! Fumaça! Machadinha de Assis! A
Gatha Chris! Era o fim!...
Mas então, quando finalmente entrei e corri para a
cozinha, de onde saía o monstro da máquina, deparei-me com uma cena muito mais
estarrecedora do que a que eu havia previsto: tia Carochinha estava lá, sim,
triturando carne, mas estava cercada por seus dez gatos! E nenhum estava
catatônico!
Ela triturava quilos e quilos de carne, depois
enlatava e colocava na despensa. O vestido preto de bolinhas brancas estava
protegido por um avental encardido e sujo. Dez latinhas estavam abertas, e eram
devoradas por cada gato, satisfeitíssimos e lambendo os bigodes.
Em choque,
fiquei parada à porta da cozinha, esperando uma resposta à pergunta que eu
fazia com o olhar. Tia Carochinha nem sequer virou-se para mim, e apenas
murmurou:
– Eu destruí o
relógio. Meus gatos estavam tão obcecados em saber quanto tempo eles haviam
perdido, quanto tempo havia passado, quanto tempo ainda lhes restava,
que esqueceram que deveriam conviver com o tempo.
Não tive reação
a1guma. Não perguntei sobre o relógio, não perguntei sobre mais nada. Sabia que
não havia o que perguntar.
Ao voltar para casa, já perto da noitinha, e já
pegando sereno, pude ouvir em algum lugar o tic-tac do relógio de
pêndulo de tia Carochinha, e fiquei nervosa, me perguntando de onde vinha –
será que ela havia largado o perigoso objeto por algum lixão de esquina?
Ele parecia ecoar pela rua, como se surgisse de cada
canto da cidade. Ao entrar em minha própria casa, vi que os relógios de toda a
redondeza faziam um som único e ritmado... Tedioso e ameaçador, que só fazia: tic-tac...
tic-tac... tic-tac...
Fin