Últimmas Folhas

10 de dezembro de 2008

S.M. coração

S.M. CORAÇÃO

Ele iria escrever-lhe indecências nas pautas dos cadernos. Sorrateiramente, sem que ela visse, ele surrupiava algum livro ou caderno ou xérox que ela carregava e escreveria pornografia para ela ler. Geralmente, quando estava estudando, no meio da biblioteca repleta de gente, ela encontrava aqueles escritos, e morderia o lábio inferior para suprimir um gemido – se de prazer ou vergonha, ela não sabia. As pessoas a sua volta ergueriam uma sobrancelha para a face inesperadamente corada dela. Ou pior, às vezes ela encontrava as poesias durante a aula, e prenderia a respiração e ficaria igualmente vermelha, e os colegas ao seu lado iriam cutucá-la e perguntar o que havia de errado.

Ele iria escrever-lhe indecências, mas dizia que eram “poemas eróticos”. Sinceramente, ela não via a diferença. Morria de medo que algum desavisado pegasse um caderno seu e se deparasse com aquelas palavras promíscuas sobre suor, gemidos, membros e dentes e bocas e quente e molhado e curvas e dedos... De repente, ela se encontraria ofegando, corada, ao lembrar das indecências dele.

E tudo o que ele mais queria era vê-la corando quando lhe perguntava o que havia achado. A voz dela sairia indignada, dizendo que aquilo era ridículo, que ele iria comprometê-la, e se alguém lesse?, ele devia estar louco, toda aquela pornografia e ela tinha uma irmã pequena em casa!, como ele ousava escrever aquelas coisas... Mas ele apenas riria dela, dizendo-lhe que ela ficava linda quando estava corada. E ela coraria mais ainda por isso.

Era um ciclo vicioso, ao qual os dois estavam acostumados. Ele, provocando-a, e ela, sendo provocada. O pior é que ele usava uma caneta vermelha ultrajante, e sempre assinava “S.M.”, com um pequeno coração ao lado. Isso a fazia sentir vontade de gritar. Um dia, ela dizia para si mesma, perderia a paciência e ele ia ter o que merecia – ela iria até a delegacia e o acusaria de assédio sexual.

Ela ria do quão ridículo seus pensamentos eram nesses momentos.

Devido àqueles poemas comprometedores dele, a mulher vivia em constante alerta, sempre nervosa, sempre olhando de esguelha, com medo que alguém no ônibus estivesse lendo por sobre seu ombro. O que iriam pensar dela, pelo amor de deus? Uma pervertida, isso sim. Ou melhor, S.M. era um pervertido. E dos grandes. Nelson Rodrigues teria orgulho dele.

Mas o que mais a irritava não era sua perversão, nem suas abordagens constrangedoras, ou seu sorriso-de-canto-de-boca insolente. Não, o que mais a irritava era o fato de que ela não tinha a menor idéia de onde ele queria chegar com tudo aquilo. É claro, se o objetivo dele era fazê-la sofrer um colapso nervoso ou transformá-la numa paranóica histérica, ele estava quase lá. Mas ela duvidava disso. Afinal, ela já era naturalmente tensa, não precisava da ajuda dele para parar num hospital psiquiátrico após um chilique em praça pública. Não, definitivamente não.

E ele não queria transar com ela. Não, senhor. Se ele quisesse, já teria feito. Dois anos era tempo demais. Era de enlouquecer, na verdade. Além do mais, existiam táticas muito mais rápidas e indolores do que aquela de poemas pervertidos pra todos os lados. E ela o vira com várias outras mulheres, então não podia ser um interesse sexual nela.

Ela dispensaria horas de sua sanidade pensando nisso. Nele. Ou melhor, naquilo. Sim, naquelas coisas que ele escrevia. Perderia seu tempo de estudo, a parte mais interessante do filme, o fio da meada numa reunião, o refrão da música que ela mais gostava. Tudo por causa dele, aquele infeliz. Ela ficaria arrepiada, e chacoalharia a cabeça para espantar esses pensamentos tão improdutivos de sua mente.

Mas era inútil. Eles sempre voltavam, principalmente à noite. Ah, a noite. Como as noites eram longas, e quentes, e úmidas e inquietas e abafadas e apertadas e suaves e duras...
Muitas vezes, ela iria acordar embolada no lençol, na beira da cama, prestes a cair no chão.
E a primeira coisa que ela verificava era se todos aqueles poemas indecentes continuavam exatamente onde ela os havia deixado.

Aquela assinatura, S.M., havia transformado sua vida numa bomba relógio que sempre iria reiniciar-se sozinha, por mais que ela cortasse o fio azul (ou seria o vermelho?).

E ela ainda não tinha idéia do que ele queria com aquilo tudo.

As indecências haviam começado quando eles passaram um dia quase inteiro discutindo sobre cinema. Coincidentemente ou não, a maioria dos filmes que ambos haviam assistido tinha um conteúdo erótico considerável, e eles até conseguiram discutir o assunto de forma bastante impessoal, sem nenhum constrangimento de ambas as partes. O que era – e isso ela tinha que admitir – um acontecimento, pois ambos eram solteiros, heterossexuais e relativamente atraentes. E ainda havia o fato de estarem sozinhos num bar à beira da praia.

Ela nem se dava ao trabalho de pensar o por que de não ter rolado nenhum clima, pois imaginava que a explicação estava além das suas capacidades humanas de compreensão dos mistérios do universo.

Naquele dia, ele pareceu ter achado muita graça que ela falaria com um homem, com o qual não tinha nenhuma pretensão de se envolver, sobre todas as cenas eróticas que ela havia assistido que beiravam à pornografia. O foco da conversa não era a pornografia, mas as histórias de cada filme. De fato, ele deve ter achado muito curioso mesmo (pensava ela, sozinha em seu quarto à noite), pois o assunto acabou enveredando para livros, e aí havia uma gama fantástica de experiência de ambos os lados.

Foi aí que o problema surgiu. Ele resolveu falar de “poesia erótica”, no que ela riu e retrucou que não passava de “pornografia ótica” pra burguês colocar na vitrine da loja, não nos fundos. Ele defendeu a dita poesia, e ela só fazia rir-se.

Além do mais, disse ela, as tais poesias nem eram tão provocantes assim. O erotismo se perderia nas incansáveis metáforas, e logo o leitor se cansava de procurar o verdadeiro significado delas.
Então ela era uma leitora preguiçosa nesse sentido. “Me processem”, diria ela.

Mas ele fez pior. Ele passou a lhe escrever indecências. E foi aí que todos os problemas da mulher começaram.

Da primeira vez, ela quase gritou de susto – o título era mais do que direto, era quase um tapa na cara. Foi nessa primeira vez também que suas amigas quase conseguiram ler o que estava escrito. Ela deu um escândalo tão grande para se afastar delas que por uma semana ou pouco mais todos acharam que ela tinha tido algum tipo de surto psicótico.

Ela se escondeu no banheiro e leu o soneto.

Sim, o cretino ainda escreveu em forma de soneto. Além de pervertido, ele era um literato. E dos bons, era só dar uma olhada na métrica daquela porcaria de “poesia erótica”. Maldito seja.
Sua poesia não era nada sutil, mas suja. Oh, sim, sujíssima. Ela nunca havia lido algo tão sujo em toda sua vida, e ficou embaraçada por entrever essa brecha de perversão na mente de um quase estranho. Ela ficou embaraçada por ele. Como ele tinha coragem de colocar no papel aquele tipo de pensamento? E pior, como tinha coragem de mostrar para outra pessoa?! Se ela tivesse escrito algo do gênero – e para isso teria que estar sendo ameaçada com uma bomba nuclear –, ela furaria os próprios olhos e depois se jogaria da ponte mais próxima se alguém lesse.

Ele tinha coragem. Ela balançou a cabeça. O que ele tinha era atrevimento, isso sim.

No dia seguinte ela tentou falar com ele, mas tudo o que conseguiu foi aquele sorriso-de-canto-de-boca irritante e um “e aí? provocante o suficiente?” que a fez ter vontade de agarrá-lo pelo pescoço e só soltar quando ele estivesse com um lindo tom púrpura.

Entretanto, o que ela fez foi bufar, ficar corada e ouvir pela primeira vez o “você fica linda quando está corada!”, frase que a deixaria louca pelas próximas trezentas mil vezes que ela a ouvisse.
E aquelas iniciais insolentes – S.M. – passariam a assombrá-la incansavelmente. Ela já havia lido-as tantas vezes, no mesmo contexto pervertido, que elas passaram a ter um significado próprio para a mulher. Em seu dicionário mental, estaria classificada como “substantivo próprio, abreviação para ‘sexo mental’, geralmente associado à inquietação e colapsos nervosos durante
um desejo sexual. Cf. Pornografia”.

Era o fim do mundo que ela conhecia. A partir daquele dia, pelo menos uma vez a cada duas semanas – e isso quando a criatividade dele estava em baixa – ela receberia um poema desses rabiscado num caderno ou xérox. Como ele conseguia surrupiar o material dela sem que ninguém visse ainda era um mistério.

Havia quase dois anos nessa brincadeira de poemas indecentes, o estilo dele mudando com o passar do tempo – a princípio, foi bruto, sujo, vulgar. Era arrepiante o modo como ele escrevia, mas ela se pegou gostando. Depois, ele passou a ser mais sutil, porém ainda direto. Nos últimos meses ele ficou extremamente metafórico, fazendo-a gemer ao transfigurar em sua mente as imagens que ele usava em suas correspondentes literais.

Ela iria enlouquecer. Ela iria, sem sombra de dúvida, inegavelmente, enlouquecer. Não sabia se queria matá-lo ou forçá-lo a comprovar na prática tudo o que ele havia escrito. Ela se pegou experimentando algumas coisas com alguns de seus namorados, mas os resultados não batiam com os da poesia – pornográfica, não erótica. Erótica era a chapeuzinho vermelho com os calcanhares de fora.

Nessa noite de sexta-feira, quase dois anos depois de seu pesadelo sexual começar, ela saiu direto da faculdade para o bar ao lado da faculdade, junto com umas amigas. Como era de se esperar, lá estava ele. Quando a mulher entrou, ele a saudou levantando a lata de cerveja, e ela ficou em alerta.

Não perdeu tempo e vasculhou seus cadernos e papéis, e encontrou na sua última xérox mais um poema assinado por S.M., coração. Leu-o rapidamente, sem que ninguém percebesse – era um haicai. Ela levantou o rosto corado para ele, fazendo-o rir.

Nessa noite, ela bebeu seis latas de cerveja, só pelo nervosismo, se perguntando se aquele tormento não iria parar nunca.

Ele achava muito engraçado brincar com ela. Provocá-la. Enlouquecê-la de tesão. E não era nem por ele, aquele desgraçado, era simplesmente por carne humana... e masculina, de preferência.

Nessa noite, além da cerveja, ela tomou duas doses de vodca.

E fez o improvável.

Arrancando uma folha do caderno, ali, no meio do barzinho, rodeada por amigas, ela começou a escrever uma poesia. É claro, que se dane a métrica, ela não estava em condições mentais para escrever um poema com métrica, mas até que arranjou umas rimas ricas pra enfeitar seu soneto – ah, é, ela homenagearia o primeiro poema indecente dele. Derramou em seu poema sua terceira dose de vodca, além de todos os desejos que explodiam em sua cabeça, e ao colocar, por fim, o título – que foi o mais difícil de bolar – ela olhou, orgulhosa, para seu trabalho.

E olhou, desafiadora, para ele, sentado do outro lado do bar. Ele sorriu o mesmo sorriso-de-canto-de-boca de sempre, mas que gradualmente foi-se desfazendo quando ela se levantou e caminhou na direção dele segurando o papel.

Foi a vez de ela lhe sorrir um sorriso-de-canto-de-boca ao deixar o papel ao seu lado na mesa e voltar para o balcão onde estavam suas amigas. Elas fizeram um alvoroço, queriam saber o que se passava. Desconversando, ela disse apenas que era um recado que estava transmitindo.

Foi quando elas ouviram o homem se engasgar e derrubar sua cerveja com um movimento brusco, agarrado ao papel que ela havia lhe entregado. Ele estava ofegante, o pescoço vermelho, seu pomo-de-adão subindo e descendo em sua garganta, e ele parecia um tanto relutante em se levantar da cadeira para que o rapaz limpasse a sujeira.

Para piorar a situação, todos a sua volta queriam saber o que ele estava lendo. Internamente, ela dava pulos de alegria ao perceber o papel ridículo que ele estava passando tentando esconder o poema – quase idêntico à situação que ela havia passado com seus amigos dois anos atrás.

Ela o encarava fixamente, e por fim seus olhares se cruzaram. Ele ainda estava ofegante – e chocado, ela percebeu com orgulho. Naquela noite, ou ela havia assinado sua sentença de morte ou sua carta de alforria.

Passados alguns minutos, quando ele parecia estar mais calmo, ele finalmente se levantou, pegou suas coisas e saiu em disparada pela porta do bar.

Ela mal podia acreditar no que havia acontecido.

Era isso? Ela estava livre? Livre dele? Livre de suas provocações? Livre de pornografia gratuita em cada mísera página de seus cadernos e livros? Então, tudo o que ele precisava era que ela revidasse?

Ele jamais esperaria que ela revidasse, isso era um fato. Deve ter ficado tão atordoado que não soube o que fazer. Então ele finalmente entrou em pânico quando leu sua própria promiscuidade – o feitiço virou contra o feiticeiro.

Duas semanas depois, e ela sentia falta das poesias dele.