“Gostaria eu que, sem mim, você não conseguisse viver. Gostaria eu que, sem mim, você mergulhasse em cigarros e músicas antigas. Gostaria eu que, sem mim, você se esquecesse de todas as contas a pagar. Se esquecesse de se barbear, ou de alimentar os peixes, ou de abrir as cortinas – por dias a fio.
Gostaria eu que, sem mim, você não conseguisse dormir. Porque a falta de sonhos é a máxima prova de qualquer amor.”
Ele arrastou os pés até a janela mais próxima, as cortinas baixas, impedindo a claridade do pôr-do-sol de invadir sua taciturnidade. Um raio, porém, insistia em iluminar-lhe o rosto – que há dias não via uma lâmina – e o peito nu. Numa das mãos, ele tinha um cigarro. Ao fundo, Piaf lamuriava-se numa fita cassete em seu aparelho de som a pilha. A noite chegava, mas ele não fez menção de acender nenhuma luz.
Seria inútil – a energia e o telefone haviam sido cortados. Mais alguns dias, e a água seguiria o mesmo caminho.
Sua dispensa do trabalho, porém, estava chegando ao fim, e ele não poderia sustentar mais aquela não-vida dele. Ele não sabia o que faria na próxima segunda-feira. Talvez se deitasse em sua cama e não levantasse mais. Não que fosse dormir, mas simplesmente deitaria lá, em latência.
A um canto da sala quase vazia, um tanque cheio de água esverdeada fedia a peixe morto. Ele arrastou os pés até a estante onde, outrora, seus peixes viveram. Pegou o tanque com certa dificuldade – seus músculos pouco usados protestaram ante ao peso. Ele caminhou até o banheiro e jogou todo o conteúdo na privada, dando descarga em seguida.
Pronto. Pelo menos agora o apartamento não federia tanto. Ao sair do banheiro, ele evitou olhar-se no espelho quebrado por sobre a pia. Sabia que não ia gostar do que veria.
Arrastando novamente os pés até a sala, ele encarou o mundo lá fora pela fresta da cortina. A vida seguia seu rumo. A dele, estava perdida.
Onde estaria o sorriso que ele mais gostava?
Ele riu com escárnio de si mesmo. E como poderia saber, se jamais o havia visto?
Balançando a cabeça, ele voltou-se para o aparelho de som. A pilha havia acabado.
Mais uma noite sem dormir.
As gargalhadas ainda ecoavam no corredor quando ela fechou a porta de seu apartamento. O gato siamês veio cumprimentá-la com um ronronar e um esfregar em sua perna. Nos olhos dela, as lágrimas embaçaram sua visão no instante em que os outros não podiam mais vê-la, fechada em seu apartamento ainda no escuro. Ela arrastou os pés até um abajur e o acendeu. Era iluminação até demais. Deu um longo suspiro e gemeu, mordendo o lábio, segurando as lágrimas. Largando a bolsa no sofá, tirou os sapatos, desamarrou os cabelos e deixou-se ir ao chão com um suspiro estrangulado. O gato miou no sofá, esfregou-se na cabeça da dona, como que consolando-a, e voltou a ocupar-se com suas garras.
Jantar. Não. Ela não estava com fome. A idéia a enjoava, na verdade. Há semanas. Talvez a sua vida toda, mas ela não reparara até algumas semanas atrás.
Esticou-se até o telefone e o tirou do gancho. Puxou o celular da bolsa e o desligou. Levantou-se e abriu a porta da pequena varanda. Barulho e cheiro de carro. Melhor assim. Suicídio lento. Virando-se, ligou o som. Piaf. Não era suficiente, e ela aumentou o volume.
Arrastou os pés até o sofá, e ao deixar-se cair nele, sentou em cima de algo duro. Num movimento, tirou o objeto debaixo de si e encarou-o: uma garrafa de Orloff. Esquecida sabe-se lá quando. O primeiro gole a fez engasgar.
Por algum motivo além da percepção humana da mulher, o gato miou e empertigou-se. Arrastando novamente os pés até a porta da varanda, ela encarou o mundo lá fora. A vida seguia seu rumo. A dela, estava perdida.
Onde estaria o sorriso que ela mais gostava?
Ela riu com escárnio de si mesma. E como poderia saber, se jamais o havia visto?
Mais uma noite de insônia. Acompanhada por dor de cabeça, dessa vez.
Ele abriu a porta da varanda, coisa que não fazia há tempos. A porta gemeu ao deslizar, e revelou Piaf tocando no apartamento de algum vizinho. Que irônico. O cheiro estava ficando insuportável. Ele teria que jogar o tanque fora.
Ela saiu para a varanda e observou a noite lá fora. Movimento na varanda do apartamento ao lado chamou sua atenção. Um homem, sem camisa, fumava um cigarro. Ela tomou mais um gole. Parecia estar sem luz, pois a iluminação incerta de velas iluminava suas costas.
Ele apoiou os antebraços no parapeito e descansou a cabeça pesada neles. O cigarro foi esquecido por um momento.
Ela olhou para o céu acima de sua cabeça, ofuscado pelas luzes da cidade. A garrafa foi esquecida por um momento.
Ele levantou a cabeça quando percebeu movimento pelo canto do olho. Uma mulher descabelada deu um grande gole no gargalo de uma garrafa que, ele assumiu, devia ser vodca. Encher a cara numa quarta-feira... Que vida ela não devia levar.
Não que ele tivesse autoridade para falar da vida de ninguém, é claro. Mas ele tinha seus motivos.
Ela sentiu alguém observando-a, e virou-se para a varanda do vizinho. Ele puxava um maço de cigarros do bolso da calça jeans e o acendia na bituca que restava entre seus lábios. Um fumante compulsivo... Que vida ele não devia levar.
Não que ela fosse um exemplo de vida saudável e feliz, mas razões, pelo menos, ela sabia que tinha.
Talvez ela tivesse seus motivos também. Ele deu um grande trago no cigarro.
Ele também poderia ter suas razões. Ela deu um grande gole na bebida.
Em silêncio, ambos voltaram para seus respectivos apartamentos e fecharam as portas das suas respectivas varandas, encerrando-se em seus respectivos egoísmos, indiferentes um ao outro.
“Gostaria eu que, sem você, eu pudesse viver. Gostaria eu que, sem você, eu me lembrasse de fazer tudo o que tenho que fazer. Gostaria eu que, sem você, eu pudesse dormir. Tudo que sei é que amo aquele que jamais verei. Gostaria de não sentir falta de sua mão quente segurando a minha, ou daquele sorriso... que é o meu favorito.”
São João Del Rey
Julho de 2008.
Julho de 2008.