CASCA-DE-COQUEIRO
I. P.
Araújo
Esta história que vou contar não aconteceu há muito
tempo atrás, nem tampouco numa terra muito, muito distante. Essa história
aconteceu exatamente aqui, onde você está, e não deve ter-se passado há muito
tempo atrás, pois quem me contou estava vivo e lúcido, por mais absurda e
mentirosa que possa soar. De minha parte, abstenho-me de julgamentos. Não digo
que é de todo verdade, nem que é de todo mentira, mas posso dizer que é a
mentira mais verdadeira que um dia você poderá ouvir.
É a história de um pescador, homem simples que nunca
se preocupou com nenhuma grande questão do universo, mas que estava bastante
satisfeito em apenas viver nele, e que andava pela praia, solitário, numa noite
de lua plena. Todos os outros pescadores já se haviam recolhido, mas ele
continuava lá, só, vagando pela areia branca.
Não havia nenhum real motivo para fazê-lo; o simples
prazer de caminhar à noite já lhe era um bom motivo. Num dos ombros nus, ele
apoiava uma vara, e no outro, uma cesta. Seu nome era Manuel, e morava sozinho
com a avó velha numa das casas da aldeia de pescadores. Perambulando pela noite
da praia deserta, foi difícil ouvir os sussurros que invadiram o ar ao seu
redor. Não passava de um murmúrio suave, que vinha bater em seus ouvidos de
acordo com o vento. Dizia algo indistinguível, mas ao mesmo tempo belo.
O peito do pescador se rebentou em curiosidade e amor
por aquela voz que soava como ondas e vento, e saiu a persegui-la. Estava
fascinado, encantado com a voz inumana que suspirava pela praia, ora contra o
vento, ora seguindo-o. De uma forma ou de outra, o pescador alcançou o lugar de
onde pareciam vir os suspiros e murmúrios. E, para sua completa surpresa,
aquela voz de sereia vinha de um tronco opaco de coqueiro.
Era o coqueiro mais alto da região, que rangia quando
o vento batia e sussurrava com sua copa verde lá no alto.
Podia ser a noite, ou o cansaço, ou mesmo os dois
unidos, mas o homem teve a certeza de ver no tronco da árvore, um metro acima
da sua cabeça, dois olhos negros como besouros piscando para ele. A palha do
coqueiro balançou, e sussurrou com a mesma voz feita de areia, onda e vento que
ele ouvira antes. Mesmo a essa proximidade, o som não passava de um murmúrio
indefinido e musical.
Seu coração bateu mais forte ainda, e ele não titubeou
em falar:
– Fala comigo, Coqueiro.
E, para seu completo espanto, uma voz, tão melódica e
táctil quanto o próprio vento, respondeu:
– E quem vem falar-me?
Suas pernas tremeram, e o cesto e a vara tiveram seu
repouso na grama esparsa que crescia na areia branca. Apesar de ter falado, o
pescador não esperava verdadeiramente que seu chamado fosse respondido. Não
conhecia dos mistérios do mundo, mas conhecia o Pai de Santo da região, e sabia
que este não acharia sábio hesitar diante de um chamado assim.
– Manuel.
– E o que Manuel quer com um Coqueiro?
– Ver o rosto de uma santa.
Algo como um riso reverberou no coração enfeitiçado do
pescador, e ele ouviu:
– Pois só você me chama santa.
– Mas é uma santa quem fala.
– Quem fala é o coqueiro.
No instante seguinte, um metro acima de sua cabeça,
surgia o rostinho pequeno e redondo de uma menina, seguido de um pescoço,
ombros, braços, tórax e pernas. Logo, a menina do coqueiro abria os braços na
direção do pescador no chão, como se pedisse para ser carregada. A casca do
coqueiro segurava seu longo cabelo, e ela teve que lutar contra a árvore para
libertá-los, assim como havia lutado pelo resto do seu corpo.
Ele ergueu os braços e segurou a menina, até ela estar
a salvo no chão, com seus pés de casca de coqueiro enterrando-se na areia
branca. – Eu moro no coqueiro.
– Eu sei.
– E não sou gente feito você.
– Sei também disso.
– Saber demais cansa. Quero conhecer os homens,
leve-me até eles. – Não era um pedido.
Os olhos da menina do coqueiro eram negros como dois
besouros, os mesmos olhos que haviam olhado-o de dentro do tronco da árvore;
seu cabelo, verde e viçoso como a copa do coqueiro; seus braços e pernas tinham
a mesma textura e cor do tronco de sua árvore-mãe; e de sua boca saiam
mariposas e vento quando falava com o pescador. Pequena como só ela, era tão
assustadora quanto o coqueiro que se estendia soberano acima dos homens. Seus
olhos refletiam a lua, e seu cabelo murmurejava com o vento.
– Você é feita de casca e bichos, os homens vão fugir
de você.
A menina percorreu os olhos pela praia deserta, olhou
o próprio coqueiro, que havia perdido seu viço quando ela o deixara, e depois o
mar e enfim o homem.
– Está certo. Os homens não gostam de casca e bichos –
caminhou até a beira do mar, de forma que molhasse os pés de casca seca com a
água salgada. Fechou os olhos-de-besouro e abriu-os novamente: – Você deve
cobrir-me com areia exatamente aqui, e velar por mim até o primeiro raio de sol
me atingir, que me cobrirá com a casca de que é feito o homem. Depois, você
lançará sua linha no mar e pescará o maior peixe que você já viu, e irá
abri-lo. Dentro dele, você encontrará meu vestido de algodão. Deve vestir-me e,
aí sim, irei ver os homens.
A voz dela era feita de alguma coisa que o pescador
jamais ouvira antes. Parecia conter a textura de uma alga, o movimento das
ondas e nenhuma dessas coisas, mas algo mudo que vibrava mais no seu peito do
que nos seus ouvidos.
– Seria uma honra – foi o que disse.
– Mas atenção, pescador. Não use isca alguma, pois o
peixe pode se ofender e arrastá-lo com ele até um túmulo aquático. E ao cortar
o peixe e tirar meu vestido, você deve colocar três conchas em sua barriga e
lançá-lo ao mar de novo.
O pescador, pela primeira vez, incomodou-se com o que ouviu
aquela voz de sonho dizer:
– Mas um peixe morto!
A menina virou-se para ele, de forma tão vagarosa
quanto um coqueiro se curva ao vento. Olhou-o com aqueles olhos que refletiam a
lua e disse:
– O peixe nunca morre. Sua espinha costura nas conchas
meus vestidos de algodão.
E deitou-se na areia branca, de olhos fechados,
esperando que Manuel cobrisse seu corpo de casca de árvore com a areia. E ele o
fez. Logo, nem os cabelos verdes podiam ser vistos, e os olhos fechados mais
pareciam duas conchas milenares que jaziam na areia. E ele velou por ela a
noite toda.
De madrugada, sua cabeça titubeava em permanecer
ereta, mas ele se apoiava na própria vara e se obrigava a continuar desperto. A
menina coberta de areia ao seu lado não levantava um suspiro sequer, e por
algum tempo, o pescador achou que ela estava morta. Ela não respirava, e de
cima dela, nenhum grão de areia caiu.
O céu finalmente começou a mudar de cor. Primeiro o
azul arroxeado, depois o laranja-lilás, e por fim o primeiro raio de sol banhou
o monte de areia onde se encontrava a menina feita de casca de coqueiro. E ela
fez o primeiro movimento: mexeu a cabeça, despejando de sua tez – agora morena
– a areia branca que lhe escondia. Os cabelos se revelaram castanho-queimados,
e só os olhos negros ainda lembravam ao pescador que ela era a menina feita de
casca com olhos de besouro.
– Pesque-o – foi o que ela disse, ao fitá-lo com
aqueles olhos enormes e negros como a boca da noite.
O pescador levantou-se, vara em punho, e após entrar
na água do mar até ter água na altura dos joelhos, lançou a linha. O nascer do
sol dificultava sua visão, mas ele persistiu. O peixe que viria até ele. O que
Manuel não sabia era se teria forças para puxar algo tão grande quanto a menina
do coqueiro dizia que era.
E assim, com medo, ele esperou.
E uma hora se passou, e mais outra, e outra. E ele
permanecia ali, imóvel e assustado, esperando um puxão brutal do outro lado da
linha a qualquer momento. Cansado, ele se permitiu olhar para a menina deitada,
ainda meio coberta de areia.
– Não fique com medo. O medo o espanta. Não fique com
medo.
O pescador não poderia dizer se a voz que ouvira saíra
dos lábios da menina, de sua própria cabeça ou das ondas que batiam suaves em
seus joelhos. Mas ele obedeceu-a, e fechou os olhos, tranqüilizando-se. Ouvir o
sussurro daquela voz já era, por si só, tranqüilizante. E tão logo ele abriu os
olhos, já calmo, sentiu um puxão na linha. E ele revidou.
Continuou puxando e puxando, imprimindo na vara toda a
sua força, arrastando o peixe para mais perto da praia... Não precisou puxar
muito para que o Grande Peixe ficasse fora d’água: ele era tão grande que já
estava com metade do corpanzil escamoso para fora no mesmo lugar em que Manuel
estivera.
Ele correu até o peixe, que ofegava, e cortou sua barriga,
no que a criatura se debateu e jogou água há metros de altura. Suas vísceras
saltaram para fora, junto com sangue e cheiro de peixe cru.
Respirando fundo, o pescador enfiou os braços na
barriga aberta do peixe, até os cotovelos, e finalmente sentiu um tecido macio
na ponta dos dedos. Com rapidez, ele puxou o vestido de dentro do peixe, tirou
as três conchas que havia guardado no bolso e enfiou-as na barriga sangrenta.
Nesse momento, o animal se debateu, virou de lado e sumiu na água, com a mesma rapidez
com a qual aparecera. E o pescador continuava ali, parado na água, com um
vestido de algodão cru nas mãos. Estranhamente, parecia tão limpo como se
tivesse acabado de ser feito. Ele não sabia se havia sido a água do mar que
limpara a sujeira, mas não havia nem sinal de sangue ou vísceras ali.
Voltou-se novamente para a praia, e entregou o vestido
à menina, que ao vesti-lo mais parecia uma santa que uma menina. Aquele era o
vestido mais estranho que o pescador já vira: tinha a textura de uma pétala de flor,
e era tão branco como uma pluma de gaivota.
Ela levantou-se e olhou-o, esperando.
– Por aqui – respondeu ele, sem esperar a pergunta.
A menina acenou com a cabeça e seguiu o pescador. Eles
caminharam lado a lado, em silêncio. Ela, sob o olhar furtivo e encantado do
pescador; e ele sob a implacável decisão dela de conhecer os homens. Por meia
hora, eles andaram, até que enfim chegaram à vila de Manuel. Era tão pequena
quanto ele havia descrito à menina do coqueiro, mas ela parecia tão curiosa
quanto uma formiga dentro de um pote de açúcar.
A princípio, os outros homens estranharam a menina de
olhos negros e passos tão implacáveis – implacáveis demais para uma simples
menina –, mas Manuel os convenceu de que não passava de uma filha de um primo
distante que morava na cidade. Quando indagada sobre sua bagagem, quem
respondeu foi o pescador:
– Perdeu-se na viagem.
E quando indagada sobre seu nome, ela mesma respondeu:
– Casca.
Durante todo aquele dia, os homens e mulheres da vila
de pescadores não pararam de olhar, curiosos e fascinados, para a
recém-chegada. As moças viam nela os cabelos mais brilhantes e macios que se
pode imaginar, e os homens ficavam encantados e assustados com seus olhos
negros, como dois besouros numa noite sem lua, como ilustrou um deles. Manuel
mostrou as casas, as pessoas e seus nomes, seus objetos. E ela ouvia tudo com
silenciosa atenção, balançando a cabeça ou meramente desviando o olhar – como
fez para o machado de um dos homens.
Na hora do almoço, ela comeu em silêncio, mariscos, arroz
e toda a sorte de comida que podia haver por ali. Demonstrou uma curiosidade
particular para com os cocos, como se não entendesse o que os homens faziam com
eles. Algumas crianças brincavam com cocos secos, e outras tantas ainda tomavam
a sua água. Uma artesã fabricava enfeites para vender.
E assim ela passou toda a tarde com Manuel, visitando
cada casa da vila de pescadores, conhecendo cada casco de cada barco que cada
pescador ali tinha. No final da tarde, ela virou-se para Manuel, deitado numa
rede, e disse:
– Está bem. Já aprendi tudo que tinha para aprender.
O pescador ergueu-se da rede e fitou aqueles olhos
assustadores.
– Tudo?
– É muito simples; agora eu vou.
– A vila é nada comparada ao resto do mundo dos
homens, Casca – interferiu Manuel, levantando-se da rede. – Há tanta coisa lá
fora que você nem imagina. Tanta gente, tanta complicação, tanta coisa
diferente do que tem aqui.
– Não importa. É tudo igual no fim.
Ela levantou-se e olhou para alguns homens, que agora
acendiam uma fogueira um pouco mais afastada da vila.
– Vai haver uma festa hoje à noite – declarou o
pescador, o peito apertado pela ideia de se despedir daquele ser encantado. Casca
levantou-se.
– Fique, quando a festa acabar, eu a levo de volta ao
seu coqueiro.
E após um breve silêncio, ela concordou.
O sol sumia no horizonte, criando sombras
fantasmagóricas dos irmãos e irmãs coqueiros de Casca, que parecia entender os
sussurros das árvores no vento.
Ele guiou-a até a grande fogueira que havia sido
preparada, e para onde todos os outros homens e mulheres da aldeia haviam ido,
e puxou um instrumento de corda e começou a tocar. A menina observava, quieta,
o ritual daquelas pessoas: algumas dançavam, todas cantavam e outras tantas
tocavam instrumentos de madeira. Havia comida: peixes, frutas, especiarias que
Casca não entendia. Aquelas pessoas pareciam nunca se cansar de dançar e
gritar, e giravam e giravam com o vento, levantavam areia, riam, davam-se as
mãos e dançavam juntas, faziam um grande círculo – e giravam um pouco mais.
Casca, por sua natureza, permanecia estática a um
canto, apenas observando. Ora ou outra o pescador a olhava, mas ela estava tão
absorta que ele tinha medo de chamá-la. Depois de um tempo, ele próprio largou
o violão e foi dançar na roda. E girou como todos os outros, contra o vento,
fazendo barulho, rindo, levantando areia.
A festa durou até a madrugada, quando o sol ameaçou
despontar no mar e fazer os restos da grande fogueira inúteis. A grande maioria
já havia ido para casa, e agora alguns poucos bêbados dormiam ao relento. Casca,
que permanecera em pé a festa toda, aproximou-se do pescador, que cochilava com
a cabeça apoiada num tronco. – Agora eu vou.
Com certa dificuldade, o pescador levantou os olhos
para a menina encantada. Ele fitou seus olhos pretos como breu e estremeceu,
acordando rapidamente. Ao seu redor, os restos da festa iam-se esvaindo com o
dia. Ele levantou-se, limpou a areia e perguntou: – Você não pode ficar?
– O pescador acha que uma árvore poderia dançar,
correr e caminhar contra o vento?
Eles chegaram ao coqueiro de Casca-de-Coqueiro antes
que o sol surgisse por completo no horizonte, e ele parecia menos vivo agora,
sem sua alma. A menina rodeou a árvore e tocou-a com a ponta dos dedos. Parecia
pálida agora, tão fraca quanto o coqueiro.
O pescador estava inconsolado. Perder aquela criatura
magnífica, que ele sabia que jamais veria de novo, e nem qualquer outra de sua
espécie, dilacerava seu coração. Os outros coqueiros pareciam sussurrar e
chamá-la pelo nome, e o pescador, impressionado, pôde ver naquelas cascas secas
e duras rostos de meninas e meninos, fitando-o com os mesmos olhos negros de
Casca-de-Coqueiro. Por um instante, ele pestanejou, e os rostos desapareceram. A
pequena menina voltou-se novamente para ele e segurou sua mão. “Obrigada”. Ela
voltou-se novamente para seu coqueiro, e com os braços abertos, apertou-se
contra o caule. Aos poucos, seu vestido branco dissolveu-se, e virou areia, e a
menina voltou a ter a pele de casca de coqueiro de antes. Só seus olhos não
mudaram. Então ela fechou-os, e voltou para casa.
– Pra quê essa viagem? –, o pescador ainda ousou
perguntar.
– É para um julgamento – ele ainda ouviu aquela voz
feito um sopro responder, e estremeceu.
O pescador, ao final do dia, finalmente foi para sua
casa, pois o passou ali sentado sem descansar. A lembrança era mortiça e o dia
anterior parecia-lhe um mero sonho. Ao seu lado, sua vara e sua cesta, como se
ele nunca tivesse chegado na aldeia. No peito, a dor e a saudade. E na mente a
imagem da mais bela criatura que já vira.