É muito coração pra pouco corpo
É pouco corpo pra tanto copo
É pouco copo pra tanto pouco
É pouco muito pra tanto sofro
Últimmas Folhas
5 de setembro de 2014
Tanto pouco
26 de agosto de 2014
Ácido
O ácido em sua língua
Não era tão forte quanto o do seu coração
Mas todos achavam uma graça
Ela e seu sarcasmo.
O único motivo
É somente porque escuto
Por isso me falam
Por isso me chamam
Por isso me mostram
Não por mim
Mas porque ouço o que dizem
E, ah!, a carência, como tem fome!
Fome de ouvidos
Não de motivos
8 de novembro de 2013
Attili
Attili suspirou com pesar quando colocou o vaso de cerâmica
vazio sobre a cabeça e pensou no que ele significava – nada além do que realmente era: um vaso de cerâmica vazio,
acompanhado por outros dois vasos, cada qual com seu desenho próprio, mas todos
os três igualmente vazios, e igualmente sua responsabilidade. Sobre sua cabeça
o vaso negro se equilibrava, e se tornava uma mera afirmação visual da condição
de Attili – uma escrava da Casa das Mulheres do Imperador. Na mão esquerda,
acolheu o de cor avermelhada, e na direita, o vaso branco. Seu peso ainda era
leve – seria apenas na volta de sua viagem que, já cheios d’água, os vasos
arriscariam cair e espatifar-se no chão, causando-lhe ainda mais problemas. Em
meio a uma guerra às portas de casa, uma cidade deixada às mulheres sempre se
tornava um caos, diziam. E as mulheres da cidade de Abermás não eram diferentes:
desde que os homens partiram Attili se viu enroscada em mais problemas e
críticas do que poderia imaginar. As mulheres do imperador eram insaciáveis,
ela sempre soubera, mas nunca precisara trabalhar tão de perto e por tanto
tempo com elas. Na paz, ela quase nunca era requisitada.
Enquanto caminhava pelo pátio pouco movimentado, na primeira
luz da matina, a escrava considerava profundamente sua atual situação. Sempre
conseguia pensar melhor ao ar livre, e com o sol da manhã ainda tímido por trás
das colinas de Leste, tudo parecia descortinar-se à sua frente. De repente,
todos os seus problemas pareciam simples ante a luz cálida da manhã, refletida
nas pedras lisas e claras do pátio interno. A velha árvore no meio já havia há
muito perecido, restando apenas seu tronco retorcido e sem vida, mas era uma
bela visão mesmo assim: Attili conhecia o ângulo certo para contemplá-la, de
forma que visse o tronco fino e seco, e por trás dele a amurada de pedra clara,
e ainda depois, o mar azulado da manhã, e ainda depois desse, as colinas de
Leste, – até, enfim, chegar ao Sol. Por alguns instantes, Attili acreditava que
se simplesmente caminhasse em linha reta, atingiria o Reino do Sol.
Bastava sentar-se na pedra certa, bem ao lado da bica d’água,
enquanto esperava os vasos encherem com o filete de água que saía placidamente
da boca da bica.
Sobre a Hora Derradeira
OU
Mais Outra História Sobrenatural, Mas, Dessa Vez, Real
Cujo Subtítulo É:
As Curiosas Histórias de Morte de Ceres Silva, Deána Deák & Milind Thondup
A MAIORIA DAS PESSOAS NÃO PODE NEM IMAGINAR, mas há algo muito pior do que morrer... E não é ter sua alma roubada numa história sobrenatural. Esses ingê-nuos que escrevem sobre almas roubadas, mortes misteriosas, espíritos desencarnados presos a uma casa, maldições lançadas numa família... São todos um bando de ingênuos principiantes.
Aqueles que sabem o que realmente é uma história sobrenatural podem lhe di-zer. Isto é, se algum dia na sua vida você conhecer alguém que realmente entende des-sas histórias. Não é um tipo fácil de encontrar – eles não estão por aí, espalhados em clubes do livro cult, ou assistindo filmes antigos, ou jogando RPG, ou fazendo rituais misteriosos, ou sequer lendo graphic novels... Não, eles estão bem escondidos de tudo isso, porque sabem o que é uma história verdadeiramente sobrenatural, e sabem que não é nada simpático. E aliás, dá um azar danado procurar por elas – você nunca sabe o que pode te encontrar.
Eles sabem que a verdadeira maldição, a pior coisa que pode realmente acontecer a um ser humano não envolve presas, dilaceração, tripas, mortes súbitas, almas roubadas, esquizofrenia, casas do espelho, cartas de baralho, nem nada disso. Eles sabem que a pior coisa que pode acontecer é simplesmente não morrer.
Exatamente.
Não morrer.
Então é isso. Agora você já sabe a verdade sobre histórias de horror e mistério, histórias que envolvem o sobrenatural, o impensável, aquelas que lhe falam dos piores medos humanos... O que todas elas se esquecem de te contar é que não existe pior coisa no universo do que não morrer. E quando eu me refiro a não morrer, quero dizer não morrer jamais.
O quê? Acaso lhe parece tentadora a ideia de viver para sempre?
E que tal a ideia de não poder morrer para sempre? Soa tão tentadora assim?
Se sua resposta ainda for sim, eu tenho uma boa e uma má notícia. Qual você quer ler primeiro? Como sou eu quem escreve as coisas antes de você lê-las, temo que eu tenha que tomar essa difícil decisão por você... Então vamos começar pela má.
A má notícia é que você está terrivelmente equivocado, assim como está terri-velmente equivocado uma pessoa que nunca cozinhou na vida e não sabe como fermento é importante para a receita do bolo.
A boa notícia é que você vai aprender que está errado.
Não me pergunte dos detalhes, mas você vai aprender. De um jeito ou de outro. Pelo menos essa escolha ainda é sua.
Aqueles que sabem o que realmente é uma história sobrenatural podem lhe di-zer. Isto é, se algum dia na sua vida você conhecer alguém que realmente entende des-sas histórias. Não é um tipo fácil de encontrar – eles não estão por aí, espalhados em clubes do livro cult, ou assistindo filmes antigos, ou jogando RPG, ou fazendo rituais misteriosos, ou sequer lendo graphic novels... Não, eles estão bem escondidos de tudo isso, porque sabem o que é uma história verdadeiramente sobrenatural, e sabem que não é nada simpático. E aliás, dá um azar danado procurar por elas – você nunca sabe o que pode te encontrar.
Eles sabem que a verdadeira maldição, a pior coisa que pode realmente acontecer a um ser humano não envolve presas, dilaceração, tripas, mortes súbitas, almas roubadas, esquizofrenia, casas do espelho, cartas de baralho, nem nada disso. Eles sabem que a pior coisa que pode acontecer é simplesmente não morrer.
Exatamente.
Não morrer.
Então é isso. Agora você já sabe a verdade sobre histórias de horror e mistério, histórias que envolvem o sobrenatural, o impensável, aquelas que lhe falam dos piores medos humanos... O que todas elas se esquecem de te contar é que não existe pior coisa no universo do que não morrer. E quando eu me refiro a não morrer, quero dizer não morrer jamais.
O quê? Acaso lhe parece tentadora a ideia de viver para sempre?
E que tal a ideia de não poder morrer para sempre? Soa tão tentadora assim?
Se sua resposta ainda for sim, eu tenho uma boa e uma má notícia. Qual você quer ler primeiro? Como sou eu quem escreve as coisas antes de você lê-las, temo que eu tenha que tomar essa difícil decisão por você... Então vamos começar pela má.
A má notícia é que você está terrivelmente equivocado, assim como está terri-velmente equivocado uma pessoa que nunca cozinhou na vida e não sabe como fermento é importante para a receita do bolo.
A boa notícia é que você vai aprender que está errado.
Não me pergunte dos detalhes, mas você vai aprender. De um jeito ou de outro. Pelo menos essa escolha ainda é sua.
Sonho, 08 de setembro de 2011
Muito assustador.
Era uma cidade. Outra cidade? Pequena cidade?
Um orfanato? Ou uma escola? Toda reformada, bonita, grande, arejada... Mas assustadora. Com uma pintura nova. Mas antiga. Eu continuava vendo outra imagem da casa - com um papel de parede azul floral, meigo, mas desbotado, assustador. Uma diretora horrível, cruel. Crianças apavoradas. Ficavam num "salão" escondido, atrás da parede. Pequenas camas de campanha para todas elas, sem privacidade, dormiam como se fossem em bancos de Igreja.
Aconteceu alguma coisa. Um fogo, uma enchente, alguma coisa. Trancaram as 1500 crianças nesse salão secreto enquanto o fogo se espalhava pelo casarão. Fogo? Não sei...
Ninguém lembrava disso. Ninguém sabia do salão secreto onde eles mantinham as crianças. Havia brinquedos lá dentro, camas reviradas. Eu conseguia ouvir as crianças correndo para a porta secreta e batendo, desesperadas, implorando pra saírem. Muitas morrem no tumulto... Onde está a professora?
Tem uma loja de DVD. Dois seriados atraem minha atenção: um com a capa toda branca, sobre "Vila Primeira" (???), um reino. Um rei. Seus amigos. Capa branca. Talvez um dragão branco. O mistério da história. Outro seriado: capa escura, não lembro. Definitivamente sobre dragões. Talvez fadas também. Era sobre o livro que eu estava lendo. Talvez Guerra dos Tronos, o seriado e o livro. E... Não lembro. Eu assistia uma parte desse seriado, mas nem o livro nem o seriado eram sobre Guerra dos Tronos.
Eu volto para o orfanato/escola... Estou preocupada, apavorada com aquele lugar. Tem uma menina comigo lá. Só nós duas. Discutimos por causa do passado do lugar, ela não acredita, mas eu sim. Vemos coisas, todos veem coisas naquela casa. Tem um menino em particular, com uma mão machucada (queimada?), que nós nunca vemos o rosto dele... Ele está sempre de costas, tentando abrir portas.
No hall de entrada do casarão tem uma parede coberta com umas cortinas/tapeçarias. Bem na entrada mesmo. Nós estávamos discutindo, e de alguma forma arrebentamos a tapeçaria/cortinas... E vemos que há alguma coisa atrás dela. Puxamos, e puxamos. Há um papel de parede amarelo de borboletinhas. Mas ainda há algo embaixo. Puxamos e arrancamos mais, e vemos um papel de parede floral azul - igual ao da casa antigamente. E, embaixo dele, uma pequena porta secreta. O salão/dormitório secreto das crianças estava escondido bem na ENTRADA do casarão!
Era uma cidade. Outra cidade? Pequena cidade?
Um orfanato? Ou uma escola? Toda reformada, bonita, grande, arejada... Mas assustadora. Com uma pintura nova. Mas antiga. Eu continuava vendo outra imagem da casa - com um papel de parede azul floral, meigo, mas desbotado, assustador. Uma diretora horrível, cruel. Crianças apavoradas. Ficavam num "salão" escondido, atrás da parede. Pequenas camas de campanha para todas elas, sem privacidade, dormiam como se fossem em bancos de Igreja.
Aconteceu alguma coisa. Um fogo, uma enchente, alguma coisa. Trancaram as 1500 crianças nesse salão secreto enquanto o fogo se espalhava pelo casarão. Fogo? Não sei...
Ninguém lembrava disso. Ninguém sabia do salão secreto onde eles mantinham as crianças. Havia brinquedos lá dentro, camas reviradas. Eu conseguia ouvir as crianças correndo para a porta secreta e batendo, desesperadas, implorando pra saírem. Muitas morrem no tumulto... Onde está a professora?
Tem uma loja de DVD. Dois seriados atraem minha atenção: um com a capa toda branca, sobre "Vila Primeira" (???), um reino. Um rei. Seus amigos. Capa branca. Talvez um dragão branco. O mistério da história. Outro seriado: capa escura, não lembro. Definitivamente sobre dragões. Talvez fadas também. Era sobre o livro que eu estava lendo. Talvez Guerra dos Tronos, o seriado e o livro. E... Não lembro. Eu assistia uma parte desse seriado, mas nem o livro nem o seriado eram sobre Guerra dos Tronos.
Eu volto para o orfanato/escola... Estou preocupada, apavorada com aquele lugar. Tem uma menina comigo lá. Só nós duas. Discutimos por causa do passado do lugar, ela não acredita, mas eu sim. Vemos coisas, todos veem coisas naquela casa. Tem um menino em particular, com uma mão machucada (queimada?), que nós nunca vemos o rosto dele... Ele está sempre de costas, tentando abrir portas.
No hall de entrada do casarão tem uma parede coberta com umas cortinas/tapeçarias. Bem na entrada mesmo. Nós estávamos discutindo, e de alguma forma arrebentamos a tapeçaria/cortinas... E vemos que há alguma coisa atrás dela. Puxamos, e puxamos. Há um papel de parede amarelo de borboletinhas. Mas ainda há algo embaixo. Puxamos e arrancamos mais, e vemos um papel de parede floral azul - igual ao da casa antigamente. E, embaixo dele, uma pequena porta secreta. O salão/dormitório secreto das crianças estava escondido bem na ENTRADA do casarão!
O Mundo Segundo Rosa Monte [1 de 5]
O Mundo Segundo
Rosa
Monte
Noveleta
PRELÚDIO;
PARTE I – Rosa;
PARTE II – Asar;
PARTE III – Valeverde;
PARTE IV – Madras;
PARTE V – Cicatriz
e
EPÍLOGO
PRELÚDIO
Essa é a história de
Rosa Monte, não minha, e não me atrevo a me inserir nela, mas é preciso
esclarecer certos pontos antes que as minhas transcrições dos relatos dela
sejam apresentadas.
Os relatos que se seguem
não podem ser confirmados através de fontes oficiais ou por testemunhas
oculares, visto que as primeiras não existem, e que quaisquer testemunhas que
possam ter existido já devem estar mortas (levadas pela guerra, pelas doenças
ou mesmo pelo tempo), mas são relatos verídicos até onde a mente de Rosa Monte
pode lembrar-se deles. Não posso dar credibilidade quanto à veracidade de nomes
de lugares e pessoas, que podem ou não ser fictícios, apesar de que minha
empregadora nunca fez cerimônias quanto a fatos embaraçosos, nem nunca
demonstrou nenhuma preocupação quanto à “reputação” de ninguém – nem sequer
dela mesma, basta ler seu relato.
Meus serviços foram
prestados na melhor forma que pude executá-los, e o pagamento foi efetuado como
o combinado. Depois de passar alguns meses elaborando sua história, Rosa Monte
partiu sem dizer para onde ia, mas pediu-me para tentar publicar o manuscrito.
Concretizo aqui a minha promessa. Sem mais delongas, segue as transcrições da
história de Rosa Monte. Que, esteja ela onde estiver, saiba que cumpri minha
promessa.
P. R. Vilanova, Verão
de 31
7 de novembro de 2013
O Mundo Segundo Rosa Monte [2 de 5]
II – ASAR
Eu poderia começar essa
história com Rosa, aos treze anos, saindo de casa nas Montanhas Rossas para procurar
pelo pai, mas então, não estaria falando sobre Asar.
Asar das Montanhas só
surgiu algum tempo depois, mas como minha noção de tempo é falha, não sei dizer
em termos numéricos aonde essa história vai começar. Minha máscara, à qual dei
o nome de Asar, não nasceu da noite para o dia. Aos poucos, ela foi-se
formando, e na verdade passou por vários nomes (Lodina, Monterrosa) até
tornar-se Asar, a garota cega e andarilha.
Talvez não tenha sido
tanto tempo assim, mas com certeza alguns anos.
O nome foi o primeiro
que veio — era para ser Hasoarr, mas ninguém conseguia pronunciar direito.
“Asar” nasceu espontaneamente, como deve ser. Sua cegueira completa foi uma
necessidade minha para me salvar algum tipo de trunfo. Sua vulgaridade veio com
o tipo de vida que comecei a levar. O medo das máquinas de vapor veio de mim
mesma, e a habilidade em lutar também.
Eu brigava muito quando
vivia nas Montanhas Rossas, sempre fui boa nisso, e quando comecei a viajar,
ainda como Rosa Monte das Montanhas Rossas, aprendi mais. Entretanto, foi Asar
quem se aperfeiçoou e encarou a luta como arte. Foi Asar quem conheceu monges
lutadores e aprendeu com eles seus truques — e, apesar de não estar muito
certa, acho que também foi Asar quem os traiu e fugiu na calada da noite, deixando
para trás um templo em chamas.
Asar aprendeu a mentir
melhor do que eu, e a detectar mentiras também. Minha visão pode ser péssima,
mas meus ouvidos e meu tato não o são. Sinto o tom de voz das pessoas, e se eu
puder, toco nelas e fico atenta ao seu coração. É engraçado constatar que
ninguém sabe que ao mentir a reação de nosso corpo muda. Eu aprendi isso a
duras penas, mas aprendi. Ou melhor, Asar
aprendeu. Aprendeu também a jogar e ganhar. Aprendemos juntas que os homens são
monstros pervertidos, e que a maioria não se importa.
***
O Livro de Lorena Nero
Prelúdio
“Circunavegando as nuvens do céu”.
Era quase meia-noite,
mas isso não parecia fazer a mínima diferença para o homem debruçado sobre a
mesa. Ali, no escuro, tendo como única fonte de luz um abajur sem revestimento,
ele franzia o cenho enquanto escrevia fervorosamente num papel. A letra saía
corrida, determinada e ilegível, mas o autor daquelas palavras parecia conseguir
distinguir com perfeição o significado de cada mínima letrinha. Mais outras centenas
(se não milhares) de papéis estavam espalhados pela enorme mesa de madeira,
agrupados numa ordem discutível, mas clara para quem havia organizado-os.
Dentre os incontáveis papéis rabiscados com a mesma letra corrida, havia
desenhos a lápis aquarelados, muitos dos quais incompletos, ou tão
absolutamente abstratos que era difícil descobrir o que exatamente era.
Às vezes, o homem calvo
parava de escrever, bebia numa caneca próxima ao seu cotovelo e consultava dois
ou três desenhos. Então, passava a língua pelos lábios e inclinava-se novamente
sobre o papel no qual trabalhava. Estava ali desde as seis horas da noite, e
parecia que não sairia nem tão cedo. Seu telefone antiquado estava fora do
gancho e ao lado dele, os peixes no aquário eram as únicas testemunhas do
trabalho fervoroso do velho.
Peixes, aliás, era um tema freqüente nos desenhos do velho calvo, e só
não apareciam com tanta freqüência quanto os ramos sinuosos de trepadeiras e a
folhagem misteriosa e sombria de árvores tropicais. Havia, porém, uma vasta
coleção: araras, pessoas, barcos, trens, macacos, oceanos, casas em meio a
florestas, cadeiras de balanço, crianças. Crianças com peixes. Inúmeras
crianças com peixes, como também crianças em cima de árvores, dormindo, lendo,
caminhando - correndo por planícies vazias. Mas também havia misteriosas
florestas, apenas um emaranhado de formas silvestres, que nem um observador
atento conseguiria distinguir todas elas.
A Porta
Relato de um momento na juventude do Senhor José Benário dos Anjos, sucedido, então, de seu
momento derradeiro
Ele sempre imaginou
histórias fantasiosas
para todas as pequenas
coisas que o cercavam.
Uma panela que caía,
uma lagartixa que via
no quintal, uma curiosa
mancha na parede. Tudo
era motivo para uma
história fantástica.
Ele tinha o privilégio
de morar numa casa
velha, numa rua tranqüila,
e por isso mesmo
vivia cercado de pequenos
e misteriosos ruídos.
Esses ruídos eram, de
fato, fontes da maior
inspiração para ele,
mais até do que as
coisas curiosas que via.
Sendo um solteirão
convicto e anti-social,
evitava trazer visitas
à casa, e logo
esses ruídos eram muitas
vezes sua única companhia
– à exceção do rádio,
é claro.
Alguns desses barulhos
lhe eram extremamente
familiares – o apitar
da chaleira, o ranger
do portão da frente,
o vento que deixava
em alvoroço a mangueira
e a acácia no
seu quintal. Esses barulhos
mais rotineiros faziam parte
da mitologia da sua
principal história,
aquela que ele desenrolava
em sua mente dia
após dia, acrescentando
pequenos detalhes e
risos à medida que
pensava nela. Era
seu pequeno mundo de
fantasia, onde ele
era o único a
ter passe livre e
controle total sobre
todas as tramas e
coisas e pessoas e
elementos.
É por isso
que ele gostava tanto
do mês de agosto
– ventava que era
uma delícia! Assim, lhe
dava ainda mais sons
da casa para ouvir
e inventar outras tantas
histórias.
No último ano,
porém, ele não havia
conseguido pensar em
nada direito. Nada que
valesse a pena
mesmo. Estava decepcionado
consigo mesmo, e
passou todos aqueles longos
meses taciturno e quieto,
e todos ao seu
redor haviam percebido
a mudança. Havia sido
acometido daquele terrível
bloqueio criativo que,
uma hora ou outra,
pega todo mundo. Mas
ele não esperava que
durasse tanto tempo
assim.
Chorava, às vezes.
De angústia. E nessas
horas, fumava feito uma
chaminé. Mas uma
tarde de agosto, depois
de quase um ano
sem escrever ou pensar
em nada, ele ouviu.
A porta que batia.
A porta do quarto
que usava só para
guardar tralhas.
BAM!
Três dias atrás
a tartaruga de areia
que segurava a porta
havia se rasgado, e
desde então que ela
rangia em seu eixo.
Mas três dias atrás
não havia o vento
que havia naquele dia
de agosto.
BAM!
Um barulho novo.