CRÔNICA DE UM NARIZ
Hoje pela manhã, ao me olhar no espelho, notei que meu
nariz estava diferente. Não
simplesmente diferente, mas evidentemente diferente. Eu diria até assustadoramente diferente. Diferente de um jeito que simplesmente
não pode ser. Até ontem à noite, meu nariz era afilado e pálido, exatamente
como meu rosto, e hoje pela manhã tinha a forma de uma batatinha e estava
bronzeado, tal qual meu rosto, que havia sido acentuado consideravelmente no
queixo. O problema, é claro, é que eu realmente não me lembro de ter ido à praia na noite passada, e tampouco feito
plástica sob o efeito de qualquer sedativo.
O fato é: meu nariz estava diferente – assim como meu
rosto. Era uma diferença sutil, é claro, para pessoas que não me olham muito diretamente,
mas é uma diferença bastante expressiva para mim, já que sou eu que me olho no
espelho todos os dias, em vários horários. E aquele nariz de batatinha e o
rosto bronzeado continuaram estampados no meu outrora pálido rosto durante todo
o dia. Atrasada como acordei, não tive tempo para me deter diante do espelho
para fazer nenhuma análise mais profunda, de forma que absorvi o fato e fui-me
embora para o trabalho.
Lá, por mais duas vezes naquela manhã, me olhei no
espelho, e nada havia mudado. Minhas amigas mais próximas, que saem comigo para
almoçar, disseram "você está diferente", mas nenhuma delas disse
"você está com o nariz de batatinha". Ou talvez elas tivessem notado
isso, mas não gostassem da idéia de dizer que eu estou com nariz de batatinha.
No almoço, por um motivo ou outro, a conversa na mesa enveredou para a plástica
e o silicone, e eu fiz questão de ouvir toda a discussão atentamente, mas
parecia não haver menção a mudança facial por geração espontânea (e
involuntária, diga-se de passagem – não que eu tenha algo contra narizes de
batatinha, mas eu gostava do meu nariz como era antes, obrigada).
Ainda antes do turno da tarde começar, eu me olhei no
espelho do banheiro do restaurante mais uma vez — e lá estava aquele
desconhecido nariz de batatinha. Eu tentei, inutilmente, amenizar o meu
bronzeado espontâneo enchendo o rosto de pó, mas devo admitir que não adiantou
muito. Enquanto eu lutava com o pó, uma mulher (que eu sinceramente não lembro
de ter visto antes desse dia) entrou e começou a retocar a maquiagem ao meu
lado. Passou o batom pelos lábios sóbrios, avermelhou as maçãs do rosto com blush, e, por fim, passou pó no nariz.
E eu definitivamente conhecia aquele nariz. Era o meu nariz! E aquela pele pálida e aquele
queixo afilado eram meus também! Correção, são
meus!
Mas eu, infelizmente, não sou uma pessoa impulsiva, de
forma que parei com a mão a meio caminho do rosto da desconhecida (ou da
desconhecida de rosto conhecido), e antes que eu pudesse pensar numa abordagem
melhor do que "ei, esse nariz é meu", ela guardou a maquiagem e foi
embora. E eu fiquei ali, com a mão estendida no ar, captando a visão
estonteante do meu nariz no rosto de outra, tentando entender. E quando dei por
mim, antes que pudesse sair correndo atrás do meu nariz, algumas colegas de
trabalho entraram no banheiro e me arrastaram para o escritório.
É nessas horas em que eu gostaria de ser menos
influenciável. Vamos para o escritório uma ova, eu quero meu nariz de volta!
Chegando lá, o único comentário que eu ouvia (na vã
esperança de ouvir um "você está com nariz de batatinha") da ala
feminina do escritório era "nossa, como você tá diferente hoje!", e
da ala masculina era sempre o mesmo: "me passa aquela caneta, por
favor?". Decepcionante. Não que eu estivesse satisfeita com minha situação
nasal, mas simplesmente gostaria de ouvir de alguém que eu estava com o nariz
de batatinha.
Mas não houve ninguém. Afinal, o relógio anunciou o
fim do expediente e eu, muito naturalmente (o mais natural que eu conseguia ser
com um nariz diferente), me preparei para sair. Como sempre, eu fui a última a
deixar o escritório, arrumando a minha eterna bagunça.
Mas, ao fechar a porta e me deparar com o beco escuro
e deserto, vi novamente. O meu nariz, ali, pálido, no rosto de outra mulher, a
mesma mulher do banheiro àquela tarde. Ela era elegantíssima, e eu não tinha
notado isso antes – talvez pelo choque de ver meu nariz nela, ou pelo simples
fato de que ela estava sem aquela maquiagem pesada.
Ela andava pelo beco, os saltos fazendo barulho ao
pisar o chão irregular da calçada. Aproximou-se de mim, desviando da forma mais
elegante que podia do lixo revirado, mas eu estava novamente estática. A única
coisa que eu podia fazer era encarar meu nariz e minha pele no rosto daquela
desconhecida. Imagino o que se passava pela cabeça dela, enquanto caminhava na
minha direção... Talvez aquele nariz de batatinha e todo o resto que estava em
mim fosse dela – assim como era meu aquele nariz pálido no rosto dela.
Passado o choque inicial, eu comecei a achar graça:
era estranho ver, de uma forma meio imprecisa, meu rosto acompanhando aqueles
saltos altos, aquele perfume caro e aquele olhar penetrante. Não era eu, afinal
de contas, e era difícil me imaginar daquele jeito.
Ela finalmente parou na minha frente, e sorrindo,
disse:
– Olá.
– Esse nariz é meu.
– Desculpe; como é?
Eu pigarreei. Aquela declaração não foi suficiente
para fazê-la entender minha situação. Decidi ser mais clara:
– O nariz, o queixo e a pele que está no seu rosto são
meus – retomei, diante do olhar curioso da mulher. – Hoje de manhã, você roubou
isso de mim.
– Isso é impossível – retrucou a mulher, sorrindo. –
Foi você que se desfez disso tudo. – Eu arregalei meus olhos. – Sim, foi você
que me deu seu nariz hoje pela manhã.
– Acho que eu me lembraria se tivesse dado meu nariz a
uma estranha.
– Acho que me lembraria se tivesse roubado o nariz de
uma estranha – retrucou a outra mulher. Ofendi-me. Sabia muito bem do que
falava, e definitivamente não havia dado meu nariz a ninguém.
– Prove – desafiei. Não tinha outra alternativa.
– Você o deu para mim porque não sabia usá-lo –
esclareceu a mulher elegante.
– Como é?
– Você não sabia usar seu rosto – ela tentava ser mais
específica. – Ainda não sabe como usá-lo. Ele é um desperdício em você.
– Disparates! – Eu estava chocada. Disse a primeira
palavra feia que me veio à cabeça.
– Quer seu nariz de volta, tudo bem – concordou a
mulher bonita – Mas eu não posso ficar sem rosto por aí...
– Achei que esse nariz aqui fosse seu – e apontei para
o nariz no meu rosto.
– Não, não – ela deu um largo sorriso. – Esse é da
última mulher que me deu seu nariz.
– E ela ficou sem? – Eu estava abalada ante a idéia de
encontrar uma mulher sem nariz andando por aí... Pobre coitada!
– Ficou original, você devia ter visto.
– Por favor, eu quero meu nariz de volta.
– Tem certeza?
Se eu tinha certeza? Se eu tinha certeza?! Getúlio morreu de bala? Ora, é claro que eu
tinha certeza! Que tipo de pergunta cretina é essa? Quem não iria querer seu
velho e bom nariz de volta?!
Acenei com a cabeça, contendo mais palavras feias que
pudessem sair da minha boca. A mulher sorriu para mim. Eu esperei.
Ela não fez nada. Nada
aconteceu.
– E então? – insisti, dando um passo a frente. Se ela
não desse meu nariz por bem, ia ser por mal. Eu estava pronta para pular em
cima dela e lutar pelo que era meu.
– Essa é a hora em que você acorda.
– Quê?
– Essa é a hora
em que você acorda – repetiu ela mais uma vez, como se eu não tivesse
ouvido da primeira.
– Eu ouvi, moça, só não entendi – retruquei, ofendida.
– Se você quer seu nariz de volta, é bom acordar desse
sonho.
Eu a encarei seriamente.
– Não seja ridícula – eu já estava ficando impaciente
com aquela conversa sem pé nem cabeça. – Eu estou bastante acordada, obrigada.
O que eu quero é meu nariz.
– E se eu te dissesse que tudo isso não passa de um
sonho? – com uma mão de dedos finos, ela ergueu um cigarro, enquanto a outra
segurava um isqueiro dourado.
Eu soltei uma risada, que saiu mais alta do que eu
esperava.
– Eu não acreditaria – resmunguei, cruzando os braços
sobre meu peito. Odiava cigarro.
Ela percebeu minha hostilidade e baixou a coisa
ofensiva.
– Será que você ainda não atinou para o absurdo que essa história é? – ela agora
parecia tão inconformada quanto eu. – Como é que você ia acordar de manhã com
outro nariz se não o seu? Isso é impossível!
– É improvável,
não impossível – eu retruquei seriamente. Não sabia exatamente como nem quando,
mas eu sabia que eu sabia do que eu estava falando. Oh, céus, isso tá ficando
confuso até pra mim...
A outra mulher deu de ombros.
– Então você não vai acordar.
– Eu estou
acordada!
Ela deu um suspiro pesaroso. – Mas você é insistente
mesmo, hein?
Dei meu melhor olhar de se-eu-te-pego-eu-te-mato, mas ela
não parecia muito incomodada. Eu nunca fui muito boa com ameaças, mesmo.
Suspirei. Aquilo estava ficando cansativo.
– Olha, eu sei exatamente o que está acontecendo aqui,
ok? Você está tentando me convencer que eu estou sonhando para que você possa
levar meu nariz embora e eu achar que tudo isso não passou de um desejo do meu
subconsciente aparentando ser extremamente real.
– Nossa – ela deu um largo e lindo sorriso. Engraçado,
eu não tinha um sorriso lindo desses com aquelas mesmas características que ela
me roubara. – Você é tão simplista.
Bufei. – Passa meu nariz pra cá, moça. Cansei dessa
lenga-lenga.
Foi a vez de ela cruzar os braços. E ficou ali parada,
me analisando. Odeio quando as pessoas ficam assim paradas, me analisando.
– Que foi agora? – resmunguei.
Ela deu outro sorriso. Diabos, será que eu podia
trocar meu nariz pelo sorriso dela?
– Você é a primeira que não acredita quando eu digo
que isso é um sonho.
– Puxa, que honra.
– Não, é sério – ela deu alguns passos na minha
direção. – É a primeiríssima. E olhe que eu estou nesse ramo há muito tempo.
Resolvi não perguntar qual era a noção de “muito
tempo” aqui, com medo de ouvir a resposta... e nem cogitei a possibilidade de
questionar o “ramo” de trabalho dela.
Eu simplesmente permaneci calada, esperando que ela
continuasse.
– Todas ficam tão chocadas, elas simplesmente não
conseguem aceitar que a realidade pode ser fantástica. – Hum, bom. Estávamos
chegando na moral da história aqui. – Então, elas entram em negação e preferem
acreditar que tudo não passa de um sonho. E lá vão elas, acordando naquela
outra realidade, um pouquinho menos mágica que essa. E quando algo fantástico
acontece-lhes naquela outra realidade, elas voltam a se convencer que tudo não
passou de um sonho, e novamente caem e acordam em uma realidade ainda menos
fantástica do que a que estavam, até atingirem o fundo.
Minha mãe nunca dizia que algo era fantástico; para
ela, algo era terrífico, e pela
primeira vez, eu achei que nenhuma palavra poderia ilustrar melhor a situação.
Mas eu sou uma mulher simples, e a única coisa que me
interessava mesmo era a droga do meu nariz. Fiz uma prece silenciosa para que
eu não tivesse que quebrá-lo no rosto da outra mulher a fim de reavê-lo. Seria
um tipo bizarro de auto-flagelação que eu não estava muito interessada em
experimentar.
– Isso quer dizer que eu não vou ‘cair’ numa realidade
‘menos fantástica’? – indaguei, erguendo uma sobrancelha.
– Exatamente – murmurou a mulher bonita, aquele
sorriso de arrasar corações no rosto. Os pobres rapazes não deviam ser expostos
a ela a não ser que a conquista fosse certa.
– E eu posso ter meu nariz de volta agora?
– Hum, você não esquece os detalhes, hein? – ela
piscou para mim.
Diabo de detalhe o quê! Era a razão principal de tudo
aquilo estar acontecendo!
Dei um sorriso amarelo. – Ora, eu mereço meu nariz de
volta, não mereço? Tenho certeza que você pode encontrar outra mulher disposta
a acreditar que isso não é real.
Ela suspirou. – É, isso é verdade.
– Então...? – eu perguntei, na expectativa.
– Tudo bem, eu te devolvo seu nariz –, mas ela não
parecia tão derrotada quanto eu gostaria que ela estivesse. Droga. E por que eu
tinha aquela ligeira impressão de que havia um “mas” vindo por aí? – Mas...
Rá!
– Mas...? – indaguei.
– Mas você não pode sair por aí contando essa
história...
– Porque...? – eu instiguei.
– Porque se não as pessoas vão correr o risco de
acreditarem em coisas fantásticas...
– E aí...?
Ela bufou, pela primeira vez perdendo aquela
compostura toda elegante. – E aí eu vou ter dias bastante cansativos para
conseguir um nariz novo!
– Mas que fetiche é esse por nariz, meu deus do céu? –
Eu franzi o cenho.
Ela deu de ombros. – Ora, uma mulher precisa de um hobby. Além do mais, eu estou acima das
habilidades da nossa realidade.
Eu controlei qualquer ímpeto sarcástico que queria
escalar minha garganta. Tão humilde! O que importava mesmo, porém, era que eu
ia ter meu nariz de volta. Aleluia.
Ficamos ali paradas, encarando uma a outra, até que eu
cansei novamente. – Qual foi agora? – resmunguei.
Ela revirou os olhos, as pálpebras longas e escuras
batendo como asas de um morcego. – A troca já foi feita, Dona Desatenta.
– Oh.
– Faça um melhor uso desse seu rostinho, garota.
Eu dei uma risada sonora. – De jeito nenhum.
Ela balançou a cabeça em reprimenda. – Mas você é
cabeça-dura mesmo, hein?
Virando as costas para mim, ela começou a caminhar na
direção em que viera. Foi então que algo estalou na minha mente.
– Ei! Espera! – exclamei, fazendo-a parar e me olhar
por sobre o ombro. – Eu não posso nem contar pra uma pessoazinha essa história?
– indaguei, esperançosa. No fim das contas, eu também sou humana.
Ela deu de ombros. – Só não apareça na televisão pra
isso, ok? – disse ela, piscando para mim e finalmente desaparecendo na sombra.
Então, nada de televisão, hun?
Dei um largo sorriso.
Ainda bem que ela não disse nada sobre livros.